Brecht e Laranjas Vão Sair da Mala de Beno Besson

Há 50 anos, Benno Besson estava no Berliner Ensemble, ao lado de Bertold Brecht. Um ano depois, em 1954, Brecht levava à cena "O Círculo de Giz Caucasiano".

Joana Gorjão Henriques in Público, 11 jul 2003

É esta peça que Besson, nascido em 1922, na Suíça, traz a Lisboa, ao Centro Cultural de Belém, na quarta e quinta-feira.

Mas Besson não traz na bagagem apenas a peça do seu mestre, de alguém que recorda como “um homem muito generoso, extremamente atento aos outros”, “absolutamente nada dogmático”. Da sua mala vão sair primeiro, no domingo e na segunda-feira, as personagens de “O Amor das Três Laranjas”, de Carlo Gozzi. Ambas as peças foram adaptadas por Edoardo Sanguinetti, “um grande poeta contemporâneo”, como diz Besson, e ambas são co-produção do Teatro Stabili Del Veneto Carlo Goldoni e do Teatro de Génova.

No palco, vão estar figuras grotescas, actores cobertos com máscaras e narizes grandes, duas fábulas “que ultrapassam o privado porque são importantes para o resto da humanidade. A sua dimensão em relação à natureza e ao cosmos tem um lado que se assemelha aos mitos antigos”, disse o encenador em conversa telefónica com o Y.

Dos tempos em que trabalhou com Brecht, recorda um episódio que contradiz a tese, “absolutamente ridícula”, de que o homem que virou o curso da história do teatro europeu do século XX era um “explorador”.

“Brecht recusou-se a assinar um espectáculo comigo, em que eu achava que devíamos partilhar a autoria, porque dizia que tinha apenas ajudado a fazer aquilo que eu lhe tinha dito para fazer”.

a força do feminino. Carlo Gozzi e Brecht são dois autores aos quais Besson regressa. “O Amor das Três Laranjas”, levado pela primeira vez à cena em 1761, é uma fábula, com influências da “commedia dell’arte” e do teatro grego: Tartaglia, filho do rei, é condenado pela fada Morgana a apaixonar-se por três laranjas (delas vão sair três raparigas, Tartaglia apaixona-se por uma delas, haverá mais peripécias mas no final o amor triunfa). O espectáculo foi criado em 2001, para a Bienal de Veneza, e Besson escolheu Gozzi porque “em Veneza ele é pouco conhecido e em Itália é pouco estimado”, diz. “O Amor….” é “um conto, a versão dos mitos do século XVIII, com uma visão muito alargada do verismo pequeno burguês”.

Foi durante a digressão deste espectáculo que o encenador propôs à equipa de actores montar “O Círculo de Giz Caucasiano”. Os ensaios foram decorrendo de palco em palco, por Messina ou Palermo, até à estreia em Génova, em Março deste ano.

Brecht e Laranjas Vão Sair da Mala de Beno BessonBesson já encenara, em 1978, esta peça escrita entre 1944-45, que se passa no final da II Guerra Mundial, e onde as personagens são postas à prova. Com quem deve ficar o filho do general assassinado, salvo pela camponesa Grucha: com a mãe biológica que o abandonou ou com a mãe adoptiva que lhe salvou a vida? Um atípico juiz, o emblemático Azdak, vai dar a resposta através do “jogo” do “círculo de giz”, inspirado numa lenda chinesa: põe duas mulheres a puxar o filho. Grucha desiste por não querer maltratar a criança, e, contrariando as regras do jogo, o juiz decide em favor dela.

“É um texto marcante, que tem grandes papéis femininos. Grucha, a heroína, é uma das grandes personagens femininas que Brecht criou. São personagens que estão ao serviço de uma causa que lhes escapa um pouco. Em todas as peças as heroínas defendem uma causa que é sustentada por outro. Grucha não está ao serviço de nenhuma causa, ela simplesmente defende a vida, um pouco ao contrário do ideal masculino da conquista do mundo”, interpreta o encenador.

a guerra dos sexos. Hoje – escreve-se no programa do Théâtre National Bretagne onde “O Círculo de Giz Caucasiano” foi encenado – já não se pode acreditar, como Brecht, num mundo melhor nascido da utopia do proletariado. Segundo Besson, a luta de classes deu lugar à luta dos sexos. “A luta de classes estancou e a luta entre os sexos parece exacerbada, tornou-se importante. Porque há uma história entre os dois sexos. O sistema patriarcal dura desde há muito tempo e começa a haver uma cisão. O planeta não vai muito bem, há muita poluição, a natureza está a degradar-se, e tudo em nome de uma crença, do progresso”, diz.

Apesar disso, o teatro de Besson – para quem todo o teatro é político – não se demarca de Brecht (se assim fosse, será que o continuaria a encenar?). Basta olhar para as imagens: está lá a estética que aponta para um conceito chave de Brecht, a distanciação, intricada na ideia de que o teatro tem de recusar os efeitos de identificação resultantes do drama e da criação de ilusões para despertar a consciência crítica – daí que o seu teatro épico obedeça à lógica da discontinuidade.

A máscara é uma forma de distanciar os actores e os espectadores da personagem, de permitir aos intérpretes desdobrarem-se em papéis – permite ao actor um confronto com a personagem, como diz Besson. “A personagem é mais importante do que a personalidade do actor. Se o rosto está a descoberto, o actor põe a sua identidade à frente, como o essencial. Se tem máscara é a personagem que se torna mais importante. Há três séculos que já não se usam máscaras. Podemos perguntar o que isto significa. Não se trata forçosamente de um progresso, não estou seguro de que o seja.”

brechtiano era brecht. Benno Besson foi trabalhar com Brecht, em 1949, e tornou-se um dos encenadores do Berliner Ensemble (fundado por Brecht e Helene Weigel), grupo que abandonou após a morte do mestre, em 1956. Aliás, foi a sua encenação de “Dom Juan”, de Molière, que inaugurou em 1954 o Theater am Schiffbauerdamm, onde se instalou o Berliner. Mas Besson afirma que não é brechtiano: “Brechtiano era Brecht. Os brechtianos são sempre menos que Brecht.”

Claro que, acrescenta, marcou-o cruzar-se com um homem assim: “Brecht viveu nos anos 20 uma explosão cultural extraordinária na Alemanha em todos os domínios, da arquitectura à pintura, passando pelo teatro. Foi uma abertura enorme que se exprimiu de forma maravilhosa. Brecht comunicou-nos um pouco os valores dessa explosão cultural. Transmitiu-me uma visão do mundo, do passado, do futuro, que tem uma dimensão que não é pequena. É como o contacto que posso ter com Sófocles, Aristófanes, Molière, Shakespeare: são aberturas extraordinárias.”

Mais tarde, Besson foi para Volksbüne, colectivo que ganhou importância artística sob a sua direcção nos anos 70. Desde 1978 que trabalha como encenador independente, montando espectáculos em vários países europeus (entre 1982 e 1989 ainda dirigiu a Comédie de Genéve). Ao longo dos seus cinquenta anos de actividade, criou mais de 60 espectáculos (peças de Brecht mas também Molière, Shakespeare ou Sófocles). “O teatro é o lugar onde pomos em jogo a vida. Esse jogo faz-se com o público. As personagens e o público jogam em conjunto. Servimo-nos da realidade como matéria do jogo. Como as crianças que jogam para aprender a viver. Os adultos também querem jogar para reaprender a viver. Só que, ao contrário das crianças, os adultos acham que sabem tudo, já não aprendem. Por isso a ‘naïvite’ tem um grande papel. Foi uma categoria estética que Brecht descobriu tardiamente.”

E como é que um homem que atravessou grande parte do século XX, olha para as mutações no teatro? “É difícil. Há o domínio da televisão, que não põe em jogo a vida. O teatro deixou de ser interessante no sistema em que vivemos, um sistema que não é necessariamente feito para pessoas mas para quem quer ganhar dinheiro. O que me aborrece no teatro de hoje, feito pelos encenadores mais novos, é que há muita vaidade. O mais forte é a originalidade e a originalidade não é forçosamente um valor estético essencial.”

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