Bertolt Brecht X2 em Almada: da comédia sobre a burguesia à tragédia do nazismo na Europa

ESCRITAS COM CERCA DE 18 ANOS DE DIFERENÇA, “TERROR E MISÉRIA” DE BRECHT E “A BODA”, DO JOVEM BERTOLT, AS DUAS PEÇAS DESTE DRAMATURGO ALEMÃO QUE PODEMOS VER NA 36ª EDIÇÃO DO FESTIVAL DE ALMADA , CONTINUAM HOJE A DESAFIAR-NOS.

Joaquim Paulo Nogueira in Rua de Baixo, 11 Julho 2019 notícia online

A Boda abriu a 36 ª Edição do Festival de Almada no palco grande da Escola D. António da Costa com uma forte adesão do público à comicidade das situações deste texto. Mesmo sendo no palco grande, com uma plateia completamente cheia, ao invés de dificultar a compreensão de planos de maior pormenor e intensidade, potenciou a natureza cómica, quase popular do texto.

Na verdade nesse aspeto é bem diferente da dinâmica de o Terror e Miséria que amanhã sobe ao mesmo palco. A peça a Boda quase não tem planos aproximados, quase não tem planos de pormenor, quase não confere aos personagens uma densidade própria. Como refere Ricardo Aibéo num dos textos de divulgação do espetáculo, “ há um protagonista, sim, com uma evolução dramática muito bem definida: é o cenário, os móveis que o noivo construiu e que se vão destruindo a par das relações humanas, numa espécie de coreografia degradante” . Tudo, ou quase tudo, já lá iremos, é grande angular, olhar crítico e satírico de um jovem poeta e dramaturgo, que ainda está amarrado àquilo que, como escreve Bernard Dort “ ama e ao mesmo tempo detesta em si próprio: o burguês anarquizante. 

A Boda

A Boda surge neste Festival de Almada por um grupo de atores que têm em comum o terem trabalhado uns com os outros na Cornucópia, como Luís Lima Barreto, Márcia Breia, David Almeida, Sofia Marques, Ricardo Aibéo, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, João Craveiro, Rita Durão e Rita Loureiro. É um prazer vê-los representar, perceber que mantendo entre si os códigos, a cumplicidade e a entrega à representação que sempre caracterizaram a Cornucópia, parece que há ali um jogo novo, uma alegria nova.

É inevitável no entanto,  por causa da importância que a Cornucópia tem para a prática teatral portuguesa contemporânea, e também pela forma algo singular, e surpreendente como terminou, que estes actores sejam confrontados em cada esquina com uma eventual continuidade desta Companhia. Ricardo Aibéo, na publicação a que já aludimos, e respondendo a uma questão de Fátima Castro Silva do TNSJ – Teatro Nacional de São João (que foi um dos grandes parceiros desta produção), é muito claro: “o que fazemos não está diretamente ligado ao Teatro da Cornucópia. Esse foi o lugar, o espaço artístico, onde no passado nos cruzámos. Mas hoje já não é o nosso motor. O Teatro da Cornucópia fechou portas e nós seguimos os nossos trilhos.

Foto de Bruno Simão

A surpreendente actualidade desta comédia de Brecht

Uma das coisas que mais impressiona nesta peça em um acto é que hoje em 2019, passados cem anos depois de ter sido escrita por um jovem ainda às voltas com a sua condição burguesa e que começa por obter um grande êxito junto desse público que critica, é a da atualidade profunda que ainda encontramos naquela família reunida em torno de uma boda de casamento.

Os eixos, as linhas de atualização do texto na realidade contemporânea são tantas e em tantos sentidos, alguns deles renovados, como por exemplo a emergência do self, do eu-próprio, na construção identitária dos novos burgueses, o homem que fazia os seus próprios móveis. Ou: o pai burguês (Luis Lima Barreto), que quer oferecer materialmente tudo, que é inconveniente e bruto; as intrigas; o  casal que está ali como projeção destes noivos no futuro, e que anuncia já a tragédia do casamento ( e que vai revelar uma história de violência doméstica); também a comida, o lugar preponderante do ritual da comida na festa, a sua sequência, o pôr e colocar dos pratos, a mãe do noivo (Márcia Breia) sempre numa lufa-lufa a servir, só existe aí, aí e no olhar de censura ao filho, as suas vinte falas na peça resumem-se a servir a comida e a censurar o filho. É tão insignificante do ponto de vista do explícito que, a fiar-me na tradução de Jorge Silva Melo e Vera San Payo de Lemos, o próprio Bertolt nem se dá ao trabalho de criar uma referência para a tirar de cena no final. Situação que a encenação e a representação resolve naturalmente: quando sai a mãe do noivo (Duarte Guimarâes), e já diante daquele cenário de ruína, lança um olhar cheio de veneno à noiva (Sofia Marques). E mais uma vez não precisamos de plano de pormenor sobre o rosto da mãe para nos apercebermos do ódio daquele olhar de despedida. Basta-nos os seus tempos, a sua corporalidade, Márcia Breia é uma das mais singulares atrizes do teatro português ( como esquecer a sua histórica interpretação da governanta de Salazar, num longo monólogo, “Deus, Pátria, Maria”  criado por Maria do Céu Ricardo).

Foto de Bruno Simão

É seco, cru o retrato do pequeno burguês pelo olhar do jovem Bertolt mas mais do que isso, é um retrato da burguesia, das suas aspirações, da sua falta de cultura, do seu real desinteresse pela arte (certo que tem um gira-discos, que tem até um cantor, mas tudo aquilo é tão pífio, tão sem graça que mais demonstra o desinteresse que ela tem por tudo o que não seja querer parecer para serquerer ter para ser). E a profunda infelicidade daquelas vidas no desmontar da selfie? Claro que aqueles noivos tinham de fugir daquelas famílias, fugir para onde? Fugir para dentro da própria tragédia que é este andar em círculo. Uma infelicidade profunda que gera violência, caos e destruição. A mobília completamente inoperacional e destruída é o próprio projeto burguês. E que desemboca numa violência que ainda não é política, é social. Aliás, é nesse momento de explosão de violência do Marido (João Craveiro) sobre a Esposa (Rita Loureiro), que, por breves momentos, quando ela confessa o seu medo de voltar para casa com ele, que aquela comédia podia tornar-se, pelo recurso ao drama e à tragédia, numa farsa. Bastante intrigante é a fala que o jovem Bertolt atribui ao marido, responsabilizando a mulher pela agressão. Ela é a culpada, ela é que o provocou. É intrigante porque não podemos deixar de ter um episódio intertextual entre este monólogo da personagem de o Marido, com o pequeno poema de Brecht sobre a violência:  “ dizem que o rio é violento mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.

Trata-se por isso de uma comédia que talvez só aqui e ali consiga ter apontamentos de farsa. De qualquer forma, e mesmo sendo uma das primeiras peças de Brecht, já tem aqui e ali aquela característica que Bernard Dort aponta a algumas obras deste período, ele chama-lhes “espectáculo-armadilha” porque o publico burguês não se apercebendo como sujeito mas como objecto é levado pelo menos teoricamente a conferir ao teatro uma função nova.

Terror e Miséria

É já no dia 12 de Julho, sexta-feira, que o Festival apresenta, no mesmo palco grande da Escola D. António da Costa, esta produção do Teatro do Bairro. No elenco dirigido por António Pires,  Adriano Luz, Inês Castel-Branco, Carolina Serrão, Francisco Vistas, Jaime Baeta, João Barbosa, João Maria, Mário Sousa, Rafael Fonseca, Sandra Santos e as crianças Manuel Encarnação e Tomás Andrade.

O texto que serve de base a este espetáculo, traduzido por Fiama Hasse Pais Brandão, foi escrito entre 1935/38 na Dinamarca, fazendo parte de um conjunto de peças que Brecht escreve no exílio. Na “ Leitura de Brecht” que temos vindo a convocar (até porque curiosamente é um livro que teve alguma influência junto dos criadores teatrais portugueses), Bernard Dort refere que são textos feitos fora de uma possibilidade real de as fazer representar ou de ele próprio as encenar. E isso é paradoxal como sublinha Dort: “ o teatro de Brecht nunca foi tão concreto como no duplo exilio do poeta alemão afastado da sua língua e do homem de teatro privado do palco: nunca ele tanto apelou ao espectador, ao seu critério, ao seu espirito critico.

Construído tendo por base testemunhos, histórias e notícias do horror nazi que lhe chegavam no exílio, é assente em vários quadros, que dramaturgicamente estão construídos de uma forma muito subtil: não havendo um eixo narrativo sequencial, as personagens não têm uma ligação direta, estes quadros servem para criar um clima que, na vida quotidiana junta terror e miséria..

O modo cru como Brecht, que nesta altura já está numa fase amadurecida do seu trabalho, acompanhando os seus textos de anotações complementares onde se vai esboçando o seu investimento conceptual maior, o teatro épico, traz os acontecimentos, reforça a perceção de que o horror foi sendo construído pela entrada na vida quotidiana da renúncia, do medo, da delação, até mesmo dentro das próprias famílias, da suspeita, da subjugação a uma determinada fatalidade política, do sequestro do exercício da justiça, refém do medo. Mesmo havendo uma diversidade de quadros, mesmo não havendo uma sequência narrativa linear, há algumas situações que se projetam como estruturantes deste clima: o episódio da justiça é paradigmático, um juiz (Adriano Luz) que tem de julgar um caso que envolve uma oposição entre duas forças nazis, as SA, as chamadas Tropas de Assalto e as SS, a Tropa de Elite de Hitler e em que se percebe que a verdadeira condenação que ele irá fazer é a de si próprio, da sua carreira. Já antes num lar pequeno burguês, Adriano Luz tinha feito um homem que, com a mulher (Inês Castel-Branco) tem medo de uma eventual denúncia por parte do filho.

O horror também é isto, um medo que se instala dentro das famílias, que as parte ao meio, como o casal em que a mulher, sendo judia, vai ter de fugir e se separar do seu marido sem lhe dizer a verdade. Habita dentro das casas, como naquela cozinha da alta burguesia em que um elemento da SA tem um comportamento provocador para com o motorista da casa. Ou no interior das fábricas, dos escritórios, do mundo do trabalho.

Há o lado exposto da violência. A tortura, a prisão, o campo de concentração. O lado da propaganda, do controlo social, do lazer e da cultura dos trabalhadores, através de organizações criadas especificamente para isso, aliás, congénere na nossa FNAT, Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, congénere também da Opera Nazionale Dopolavoro e da franquista Lazer y Descanso. A perseguição política. O recrutamento de jovens e crianças a partir dos oito anos, a sua doutrinação.

A criação do Teatro do Bairro, onde ressalta também a presença do pianista Nicolas McNair, autor da música do espetáculo, tem desenho de som de Paulo Abelho, luz de Rui Seabra, figurinos de Luís Mesquita, e cenografia de Alexandre Oliveira.  Para além daquilo que já vem sendo a marca criativa de António Pires, que faz parte, com Bruno Bravo, Ricardo Neves-Neves, Mónica Calle, Miguel Seabra, Álvaro Correia, Cristina Carvalhal, entre outros, de um conjunto de criadores portugueses a quem talvez possamos encontrar como característica comum um grande rigor no jogo de composição entre os vários elementos cénicos,  há um aspeto que nos salta à atenção: na distribuição das cenas há uma circulação de papéis entre bons e maus, o que, não sei se propositadamente, reforça esta ideia de que os esbirros da noite nazi se parecem muito com as suas vítimas. Estão fora dessa triangulação Adriano Luz e Inês Castel-Branco, em cujos personagens, como referimos atrás, podemos encontrar outro veio dramatúrgico.

 Por último, para a criação dramatúrgica do espectáculo o encenador não dispensou a consulta da historiadora Irene Flunser Pimentel, e não fugindo da inevitável contextualização política que o texto de Brecht tem nos conturbados dias de hoje, desafiou Daniel Oliveira a acompanhar alguns ensaios do espectáculo e a escrever a partir dessa experiência. Do texto que o cronista escreveu retiramos este naco, em que se faz um paralelismo entre a denúncia em Brecht e o incentivo á delação logo após a vitória de Bolsonaro no Brasil:

”O que impressiona é a banalidade corriqueira com que a tirania se anuncia. Uma máquina repressiva verdadeiramente eficaz não depende de nenhuma polícia política. Nem sequer depende de militantes fanáticos. Depende de um terror partilhado que torna todos prisioneiros do medo e da desconfiança. Como diz o pai desesperado por imaginar o seu filho a denunciar os seus desabafos caseiros às autoridades, “basta que reine a suspeita para todos serem suspeitos.” O terror verdadeiramente eficaz tem de estar em casa, na sala de aulas, no trabalho, na cama. Hoje, à distância de uma mensagem de WhatsApp.”

A BODA
ESCOLA D. ANTÓNIO DA COSTA, PALCO GRANDE QUINTA, 4 DE JULHO
M/12 . Dur. 90m

FICHA TÉCNICA: A Boda de Bertolt Brecht. Tradução de Jorge Silva Melo e Vera San Payo de Lemos Encenação:Ricardo Aibéo Com: David Almeida, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, João Craveiro, Luís Lima Barreto, Márcia Breia, Rita Durão, Rita Loureiro e Sofia Marques.Cenografia, figurinos (com Susana Moura) e guarda-roupa:Cláudia Lopes Costa Desenho de Luz: Rui Seabra. Gestão administrativa Patrícia André Direcção de Produção Armando Valente Produção Executiva: Daniel Nunes

TERROR E MISÉRIA
ESCOLA D. ANTÓNIO DA COSTA, PALCO GRANDE SEXTA, 12 DE JULHO
M/12 . Dur. 100m
FICHA TÉCNICA

Terror e Miséria de Bertolt Brecht. Tradução: Fiama Hasse Pais Brandão Encenação: António Pires. Intérpretes: Adriano Luz, Carolina Serrão, Francisco Vistas, Inês Castel-Branco, Jaime Baeta, João Barbosa, João Maria, Mário Sousa, Rafael Fonseca, Sandra Santos Crianças: Manuel Encarnação e Tomás Andrade. Música original e pianista: Nicholas McNair; Cenografia: Alexandre Oliveira; Figurinos: Luís Mesquita. Desenho de som: Paulo Abelho; Desenho de luz: Rui Seabra; Caracterização: Ivan Coletti; Mestra Costureira: Rosário Balbi; Assistente de iluminação: Cláudio Marto; Assistente de som: Guilherme Alves; Construção de cenários: Fábio Paulo; Costureiras: Luísa Sousa; Fátima Figueiredo e Conceição Peixoto; Estagiárias de caracterização: Cláudia Sobral, Filipa Pesca, Jacqueline Tomé, Joana Clemente, Susana Alves e Tamiris Hollanda; Estagiárias de guarda roupa: Luana da Silva, Mansy Singh; Ilustração: Joana Villaverde; Produção executiva: Marta Moreira e Ivan Coletti; Administração de produção: Ana BordaloComunicação: Maria João Moura; Produtor:Alexandre Oliveira; Produção: Ar de Filmes/Teatro do Bairro

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