As memórias de Carmen Dolores no lugar a que pertencem

A partir de um livro de memórias, Diogo Infante leva para palco a vida de Carmen Dolores. Carmen pode ser visto até 29 de Julho, no Teatro da Trindade, na sala que a partir desta quinta-feira passa a ter por designação o nome da actriz.

Gonçalo Frota in Público, 12 jul 2018 notícia online

Mal pousou Vozes Dentro de Mim, livro de memórias que a actriz Carmen Dolores lançou há um ano, Diogo Infante teve “esse vislumbre” de que no interior daquelas páginas havia um espectáculo à espera de reclamar existência em palco. Quando, pouco depois, o actor, encenador e actual director do Teatro da Trindade cumpriu com a promessa de visitar a actriz, aproveitou a ocasião e pediu a sua bênção para criar uma dramaturgia em torno não apenas daquele tomo editado pela Sextante, mas das suas memórias num sentido mais amplo.

Carmen, espectáculo que integra o Festival de Almada entre 12 e 15 de Julho – mas que depois prossegue a sua carreira no Trindade, em Lisboa, até dia 29 – é um monólogo que passeia pelas memórias teatrais de Carmen Dolores, sem obedecer a qualquer regra cronológica. As Vozes Dentro de Mim – as personagens, portanto – sobem ao palco como um sussurro, uma evocação em fundo de uma carreira de quase 70 anos, mas que nunca se sobrepõem ao arco narrativo e emocional que Diogo Infante desenhou em estreita colaboração com a actriz homenageada. Aquilo que prevalece é, a cada instante, a história de alguém que dedicou a sua vida ao teatro e não um retrato traçado a partir das muitas mulheres a quem emprestou o corpo.

Esta humanização da actriz conta-nos, por exemplo, o impacto que teve para si assistir num camarote de 1.ª ordem a Frei Luís de Sousa, com Palmira Bastos, a importância da rádio no lançamento da sua carreira, a sua relutância em aceitar o papel no cinema que lhe foi oferecido por António Lopes Ribeiro (em Amor de Perdição), a sua relutância posterior em se juntar ao elenco do Teatro da Trindade ou o conselho de Lopes Ribeiro para que não enveredasse pelo Conservatório, sob pena de poder desbaratar o seu jeito natural. No fundo, Carmen assenta sobre “uma manta de retalhos composta por memórias de muitas naturezas diversas, desde a intimidade familiar ao lado profissional”.

Graças à cumplicidade entre Diogo Infante e Carmen Dolores, todo o processo de construção do espectáculo contou com a participação da visada, tendo a actriz proposto algumas alterações à proposta de texto que ele lhe apresentara, algo que, no entendimento do encenador, “valida este acto de amor, esta entrega e esta homenagem que lhe queremos prestar”. “E torna tudo ainda mais rico, porque a Carmen não se limitou a estar presente como um ser passivo. Ela é uma autora viva que está aqui connosco, ela é a personagem. Ao mesmo tempo, deu-nos muita liberdade, concedeu-nos a possibilidade de nos afastarmos e não ficarmos demasiado presos a ela – o que podia ser uma limitação, por ser uma referência tão presente e tão próxima.”

Tanto assim que Carmen Dolores enviou como recado (via Diogo Infante) para Natália Luiza, a actriz que veste a sua vida em palco, a seguinte mensagem: “Diz à Natália que ela podia não me conhecer.” Essa simples generosidade de Carmen Dolores, de entregar o seu percurso artístico em mãos alheias, funcionaria como elemento libertador. “De repente”, conta o encenador, “a teatralidade passou também por podermos reinventar a realidade. Foi isso que fizemos, usando a nossa sensibilidade como filtro.” Sem esquecer, no entanto, que não queriam nem deviam afastar-se “do espírito de Carmen”.

Clareza de espírito

O palco por onde Natália Luiza vai desfiando as memórias de Carmen Dolores – que evocam, por exemplo, a “pretensa rivalidade” que manteria com Eunice Muñoz ou os anos em que viveu em Paris – está recheado de “objectos que estavam cheios de pó e tapados com mantas, restos de cenários e de figurinos” que Diogo Infante foi descobrir no sótão do Teatro da Trindade. São outras peças da memória de um teatro onde Carmen Dolores actuou durante vários anos – algo que estará também documentado numa exposição que ocupa o foyer e as galerias, em redor da sala que doravante passa a ter por designação oficial o nome da actriz, num transbordar da cena para o restante espaço teatral –, outra forma de reactivar a história daquele lugar.

Num certo sentido, Carmen repõe uma certa verdade sem a qual as memórias da actriz poderiam ficar incompletas. Sendo certo que é na palavra escrita que estas visitas ao passado ficam habitualmente fixadas, no caso de Carmen Dolores seria estranho que essas palavras não fossem, depois, ditas em voz alta no palco. Ela que, através de Natália Luiza, não quer deixar fugir as palavras, trata-as com um respeito e uma delicadeza raras. De certa forma, o mesmo respeito e a mesma delicadeza que se sente em cada segundo desta Carmen que Diogo Infante mostra no Trindade, numa homenagem que é também um agradecimento e um reconhecimento público do encenador por uma das “pessoas referenciais” da sua vida. Em cima do palco, claro, mas também fora dele. Porque, aos 94 anos, Carmen Dolores é uma mulher cuja clareza de espírito, garante, o inspira e responsabiliza.

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