Apoio às Artes, as razões dos protestos

A premência de rever o modelo em vigor, com o contributo de grupos de trabalho e a participação dos agentes culturais, visando a simplificação de processos, a clarificação de avaliação e as qualificações dos jurados

Helena Simões in Jornal de Letras, 11 Abr 2018

A cultura é o que transforma uma sociedade em civilização. Os bens culturais podem não ter rentabilidade direta, mas qualificam os cidadãos para pensar, criticar e agir com responsabilidade. Indiretamente, reduz as desigualdades e assegura uma educação para a estabilidade e dignidade humanas. A mudança do paradigma económico que tende a transferir para os bens e serviços culturais o caráter de produto comercial rentável ,competitivo e, consequentemente, eficiente, converte as entidades culturais em empresas ou estruturas de negócio viável.

O recente clamor que se abateu sobre o país e que culminou, a 6 de abril, com a manifestação de protesto dos agentes culturais em seis cidades, vem provar a inadequabilidade das políticas públicas de apoio às artes no contexto de modelos económicos tendentes a articular produção artística com rentabilidade.

A pedra de toque foi, como se sabe, o anúncio do resultado do concurso que atribuiu os financiamentos do apoio às artes a partir de 2018, e que eliminou do mapa agentes artísticos de percurso continuado e que compõem o tecido cultural do país, gerando uma onda de indignação que agregou os excluídos e os não-excluídos, interpelações ao governo pelos grupos parlamentares, cartas-abertas de associações informais e sindicais.

No foco da contestação está a Direção-Geral das Artes, que procedeu à revisão do anterior modelo de apoio e que, segundo o secretário de Estado da Cultura, devia “ser capaz de dar resposta à grande variedade e heterogeneidade do setor”. Como se sabe, o projeto falhou na aplicação dos pressupostos do próprio diploma, no qual as entidades criadoras de Cultura deviam encontrar “uma forma de identificação e de articulação, que contribua para o cumprimento da sua missão de Serviço público. Sejam estruturas de programação que existem há muitos anos, sejam novos criadores sejam projetos de longo ou de curto prazo, seja nos grandes centros urbanos ou fora deles, individualmente em coprodução, em parceria ou em rede, em território nacional e internacional”.

Afinal o “diploma consistente e abrangente” onde as entidades deviam encontrar “uma oportunidade de aceder aos apoios públicos para as artes”, que se anunciava “simplificado e personalizado”, produziu uma perversidade burocrática em formulários de candidatura que se revelaram hipercomplexos e não operativos. O que devia ser o tal “pilar no apoio às artes” mostrou-se inoperante e falho nos prazos, nos fundamentos enunciados e na apreciação dos jurados, limitada a um modelo que carecia de amplitude para a efetiva avaliação da matéria teatral, do projeto artístico específico e do estudo dos públicos alvo. Foi assim que as entidades artísticas receberam os resultados, com um misto de traição e humilhação, no que lhes pareceu constituir a imposição de um novo paradigma estético em oposição à diversidade de públicos a contemplar.

As razões próximas deste desfecho surgem relacionadas também com os sucessivos atrasos acumulados na promulgação do decreto-lei, dos regulamentos, dos avisos de abertura, obrigando as entidades artísticas ao preenchimento de formulários de candidatura em tempo diminuto e a contrair empréstimos para assegurar a prossecução dos projetos. A tensão exacerbada já ficara manifesta nos discursos dos premiados na Gala SPA, a 20 de março no CCB, a corroborarem o comunicado de 650 atores que denunciavam “a mesma situação de miséria que se instalou no quadriénio anterior”.

Para o descontentamento generalizado contribuiu, igualmente, a não integração das recomendações que as entidades emitiram relativamente ao diploma de financiamento das artes. O Sindicato de Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos CENA STE afirmou que contestou a proposta, “os critérios de apreciação, as majorações, os limites de pontuação, as formas de atribuição de apoio, o combate tímido à precariedade e a pouca apetência para a descentralização”.

A montante surge inevitavelmente a penúria na dotação orçamental para a cultura, num governo socialista no qual os agentes culturais depositaram esperanças e expectativas, desde o Manifesto em Defesa da Cultura (julho 2014) que apoiava a candidatura de António Costa para primeiro-ministro, como alternativa política e cultural sólida, e que agora surgiam goradas. Perante tão manifesta reação da comunidade artística e dos grupos parlamentares, o primeiro-ministro respondeu com uma carta aberta, onde reafirma “a aposta na cultura e na criação como prioridade estratégica e desígnio nacional”, e com suplementação orçamental, a permitir resgatar muitas das entidades artísticas que, embora elegíveis, não foram contempladas por falha de financiamento.

Esta solução de urgência, implicitamente, vem reconhecer erros graves na condução de um processo que prometia um diploma novo, mas que não se apresenta muito diferente do anterior, que peca por comparar estruturas de criação com as de programação, as emergentes com as de comprovado e continuado serviço público, estruturas com e sem espaço próprio. O caso exemplar é o da Companhia de Teatro de Almada, que gere o orçamento do maior Festival Internacional de Teatro em Portugal e que, pela deficitária dotação de menos 25%, considera a não execução da edição deste ano, com perda evidente para os públicos que criou e fidelizou em 34 anos de existência.

As dotações acrescidas também confirmam o subfinanciamento das artes do espetáculo, e a consequente premência de reinscrever na agenda política a meta de 1% do OE, e a revisão do modelo de apoio às artes em vigor, com o contributo de grupos de trabalho e com a efetiva participação dos agentes culturais, visando a simplificação de processos, a clarificação dos critérios de avaliação e as qualificações dos jurados. Vem, por fim, constatar a necessidade de repensar consistentemente a política cultural pública de forma alargada, no parlamento, a sede da democracia.

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