Amor e preconceito, versão Fassbinder
Rui Monteiro in Público 17 Novembro 2022
Eles, os filhos e o genro de Emmi, estão tensos, sentados na sala de estar. Afinal, não é todos os dias que uma mãe, viúva e às portas da reforma, anuncia, mais ou menos de supetão, o seu casamento. Talvez ainda não saibam bem o que pensar. Mas vão cair de borco, como se costuma dizer, ao perceberem que Emmi é agora a mulher de Ali, um homem com metade da sua idade, o que para eles já seria problema, um problema muito ampliado pela sua condição de imigrante marroquino. O silêncio na sala é constrangedor. Até ser quebrado pela fúria do filho pontapeando a mobília. A partir daqui, é sempre a descer.
Um optimista esperaria que, quase 50 anos depois da estreia do filme de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), agora adaptado e encenado por Rogério de Carvalho, o racismo e a xenofobia fossem uma recordação do passado. O presente mostra como estavam enganados. Como o que mudou, e muito mudou, não foi nem de perto nem de longe suficiente para alterar o essencial do estado das coisas, que, a bem dizer, apesar dos esforços de alguns, não só permanece como é argumento suficiente para reforçar partidos de extrema-direita e, até, eleger governos. A derrota do pensamento mágico demonstra – como repetidamente afirma o sociólogo António Barreto, colunista do PÚBLICO – que se é verdade as sociedades evoluírem sempre, também é verdade que nem sempre evoluem para melhor.
A fúria do filho da empregada doméstica contra a mobília não é o primeiro sinal de que a relação entre Emmi (Teresa Gafeira) e Ali (Cláudio da Silva) é um amor condenado socialmente. Isso já se sabia pela reacção de amigos, colegas e vizinhos. O casamento, com a sua carga simbólica e institucional, digamos que apenas radicalizou a hostilidade sobre um casal que, aos poucos e de maneira pouco subtil, vai ficando isolado, cercado por um preconceito que só será suplantado pela conveniente hipocrisia dos que os rodeiam quando as circunstâncias se alteram. A hipocrisia, aliás, é um tema muito explorado na obra de Fassbinder, que a identificou no comportamento da sociedade alemã do pós-guerra, especialmente durante o chamado “milagre económico” dos anos de 1970, decerto um dos mais conturbados períodos da história do país, e nela zurziu sempre que surgiu uma oportunidade nos seus filmes, como nos seus escritos e suas entrevistas.
É igualmente a hipocrisia que subjaz da leitura da obra por Rogério de Carvalho (traduzida por António Sousa Ribeiro) que, aqui, regressa ao autor de quem, em 1984, já montara uma versão de O Paraíso Não Está à Vista. Encenador experiente, Carvalho tem o conhecimento e a habilidade para se afastar da origem cinematográfica da peça, apresentando a sua visão com uma discrição cénica (realçada pela singela cenografia de José Manuel Castanheira e pela segurança da iluminação de Guilherme Frazão) que dispensa o artifício, assim reforçando a importância das palavras, o que elas revelam e o que elas insinuam ou ocultam, como parte essencial da violência física e principalmente psicológica da acção.
Em O Medo Devora a Alma é ainda mais acentuada a progressiva marginalização dos amantes, sucessivamente, depois de um período – vá lá – de lua-de-mel, empurrados para uma existência claustrofóbica e algo paranóica, como quem sente o cerco apertar-se à sua volta sem encontrar uma saída. Para bem chegar ao seu porto, o encenador conta com um elenco competente (Catarina Campos Costa, David Pereira Bastos, Júlio Mesquita, Laura Barbeiro, Lavínia Moreira, Maria Frade, Miguel Elói, Pedro Fiúza e São José Correia), mas é com a eficácia das interpretações de Teresa Gafeira e Cláudio da Silva que faz a água chegar ao seu moinho e mostra como o tempo passa mais depressa que o preconceito.
O Medo Devora a Alma
De Rainer Werner Fassbinder
Por Companhia de Teatro de Almada
Encenação de Rogério de Carvalho
Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada
Até 27 de Novembro