Actores ficam mais livres com máscaras

Elisabete França in Diário de Notícias, 16 jul 2003

Entrevista a Benno Besson

Porque encena Brecht tantas vezes?
É o único dramaturgo com um nível comparável, aproximadamente, a um Shakespeare. Não abundam os grandes autores de teatro.

Há quem considere Heiner Müller o sucessor. Em que nível o situa?
Não é, de todo, sucessor de Brecht, é contraditor de Brecht, digamos. mas não tem nada a ver com Brecht como sucessor à altura.

Ainda quanto a dramaturgos de língua alemã, que importância atribui ao austríaco Thomas Bernhard?
Não está mal…

Voltemos a si. Por que recorre à máscara para os actores, mesmo em peças contemporâneas, já tão longe da commedia dell’arte, caso agora de O Círculo de Giz Caucasiano?
As máscraras são uma tradição do teatro grego, só deixaram de usar-se há 300 anos, no ocaso da commedia dell’arte, mas não sei se isso é um progresso.

Continua a utilizá-las na dúvida?
Para representar a realidade, os actores devem abandonar a sua realidade pessoal face à personagem e colocar esta em primeiro plano.

Os actores ficam mais disponíveis para a entrega à personagem e a da personagem ao público?
Ficam muito mais livres com máscara. Encenei clássicos gregos e debrucei-me sobre a questão. Os gregos colocavam o ser humano num quadro natural _ em contacto com a Natureza, com o cosmos _ e falavam de problemas essenciais para a humanidade, não apenas de personagens particulares. O teatro evoluiu neste último sentido e é uma perda. Nos gregos havia outra dimensão, situavam as personagens num plano mítico.

Que efeito procura, hoje em dia, com o recurso à máscara, abandonada pelos encenadores em geral? Algum efeito em especial junto do público?
Como viu n’O Amor das Três Laranjas, a máscara não destrói o contacto com o público, que, pelo contrário, está sempre pronto a aderir às personagens mascaradas. Por outro lado, atrás da máscara, os actores reencontram o seu destino, na pele de personagens mascaradas, e mesmo melhor.

Com esse recurso, faz alguma diferença de tratamento em relação a peças clássicas e contemporâneas?
Não há diferença essencial.

Que actualidade encontra na fábula em que assenta O Círculo de Giz Caucasiano, de Brecht, que se verá de seguida no Centro Cultural de Belém? No tempo de Brecht, a actualidade passava pela alusão política…
A personagem principal é uma criada. Essa criada leva uma criança abandonada: antes do mais, salva-a, mantém-na viva. Depois, arranca-a ao seu destino de herdeiro patriarcal e assim propõe-lhe um destino diferente do de patriarca. Cumpre um ideal de proteger a Natureza, de desenvolvê-la e de proteger o mundo.

Uma função essencialmente feminina, não? As mulheres dão a vida, são–lhe próximas, preservam-na…
É o seu papel fundamental, distinto do dos tipos, virados para a conquista, do cosmos e do mercado mundial, entre outras, com que as mulheres têm pouco a ver. Esse destino de mulher é hoje essencial, porque a Natureza está ameaçada, o planeta está ameaçado e as conquistas tipicamente masculinas não são adequadas à protecção e salvação do mundo e da humanidade, que está em risco de grave derrocada. Por isso a história contada n’O Círculo de Giz… é hoje essencial, coloca problemas do presente e do futuro próximo.

Os dois espectáculos que apresenta em Lisboa baseiam-se em versões italianas de Edoardo Sanguinetti. O texto de Carlo Gozzi foi adaptado, com acrescentos que lhe dão actualidade palpitante. O de Brecht é só tradução ou é também adaptação?
Sanguinetti só traduziu Brecht, fielmente e de forma admirável. Estou muito contente por fazer os espectáculos em italiano, porque não há tantas traduções assim, com um nível de excelência. No caso de Brecht, a linguagem é belíssima, muito importante e especial. Sabia que Sanguinetti era um admirável tradutor, porque já me tinha feito uma tradução, maravilhosa, do Édipo Tirano [de Heiner Müller, a partir da peça de Sófocles, vertida em alemão por Hölderlin, encenação de 1967]. O presente trabalho é de qualidade semelhante, no mais segue-se a montagem da versão francesa, que apresentei antes em França.

Sendo suíço e tendo o seu percurso, cria à vontade em três línguas…
Nasci na Suíça francesa, o francês é a minha língua materna e na escola estudei outras. Mas a Suíça alemã não tem nada a ver com a francesa; para nós, é o estrangeiro. A Suíça italiana também já é outro mundo. A Suíça nem existe: existe pelo exército, a perca [peixe de água doce] e os comboios.

E os relógios e os chocolates?
Isso é para os estrangeiros, há essas indústrias mas, culturalmente, há uma diversidade total, destinos distintos entre si. Quando se é suíço, só se tem o desejo de partir.

No seu caso, partiu primeiro para França; tinha conhecido Brecht em Zurique e foi juntar-se-lhe em Berlim.
Durante a guerra, vi as peças de Brecht em Zurique. Os antifascistas alemães e austríacos fizeram bastante teatro, Zurique tornou-se uma encruzilhada de culturas extremamente importante: era o único lugar da Europa onde se fazia um teatro actuante e montaram-se peças de Brecht, como Galileu Galilei e Mãe Coragem, entre outras. Era estudante em Zurique, vi essas peças e assim comecei a conhecer Brecht. Também adaptei ao teatro o seu conto Os Três Soldados, que representei com camaradas de partido.

Depois ele instalou-se em Zurique.
Brecht regressou do exílio na América, onde era perseguido pelo Comité das Actividades Antiamericanas. Arranjámos-lhe um apartamento e encontrámo-nos muito. Por fim, ele contratou-me, como actor e assistente de encenação, para fundar o Berliner Ensemble, em Berlim Leste.

Por que deixou a companhia em 1956, após a morte dele?
A independência que Brecht me tinha assegurado não permitia que me sujeitasse a certas regras comunitárias e então saí.

Como vê certo teatro de hoje, dum real quotidiano em primeiro grau?
Visto de longe, parece que a originalidade tem papel crucial, vende-se bem, o teatro integra o mercado. Há muita vaidade nisso, sem a dimensão do que, para mim, é o modelo, o teatro grego, ligado à polis, à comunidade.

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