“A última estação” demonstra em teatro o desajustamento da sociedade à dimensão humana

A transgressão na vida e na arte, explorando a fronteira entre o sagrado e o profano, para falar na inadequação humana à sociedade contemporânea, domina a peça "A última estação", a estrear na segunda-feira, no Festival de Almada

in Diário de Notícias, 15 jul 2018 notícia online

rata-se da mais recente criação do ator e encenador Elmano Sancho – que também a escreveu a obra – e da última produção em língua portuguesa da 35.ª edição do Festival de Almada, que se estreia na segunda-feira na sala experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite, nesta cidade da margem sul do Tejo.

A peça – que tem novas representações na terça e na quarta-feira – teve como ponto de partida o assassino em série norte-americano Ted Bundy (1946-1989), disse o encenador à agência Lusa, a quem o mundo do crime, sobretudo o dos assassinos em série, despertara o interesse, “pelo lado obscuro, proibido e, de certa forma, atrativo do tema”.

Foi o caso de Ted Bundy, considerado um dos maiores e mais temidos assassinos de mulheres nos Estados Unidos da América, nos anos 1970, que era um homem extremamente inteligente, com formação superior, sem infância ou adolescência problemáticas conhecidas, e com carisma, razão pela qual conseguia atrair as vítimas.

O interesse no tema fez com que Elmano Sancho guardasse, no ambiente de trabalho do seu computador, algumas imagens do assassino, eletrocutado, aos 42 anos, numa prisão da Flórida, com a ativação da cadeira elétrica a ser feita por uma mulher.

Até que, um dia, um amigo viu uma dessas imagens e lhe disse que estava muito bem, ao que Elmano Sancho respondeu que não era ele, mas Ted Bundy. “Mas és muito parecido com ele”, insistiu o amigo, dando ‘o tiro de partida’ para a peça que agora se estreia no antepenúltimo dia do 35.º Festival de Almada, que termina na quarta-feira.

A conceção da peça foi pretexto para explorar “a questão da transgressão na vida, que é punível por lei, mas também na arte”, e “para interrogar como se pode transgredir na arte, nos dias de hoje”, afirmou.

A estrutura cénica e dramatúrgica do espetáculo foi depois construída com base na paixão de Cristo, já que o encenador estava interessado em trabalhar a fronteira entre o sagrado e o profano.

O facto de ter nascido em 25 de dezembro, dia instituído pela igreja católica apostólica romana como o do nascimento de Jesus, deu “um lado anedótico a tudo”, observou.

Estava dado o mote para o texto que construiu depois, com 15 cenas, numa recriação da via sacra assente na na exploração de três três universos.

O primeiro universo, o do Ted Bundy com as vítimas, o segundo, o das personagens bíblicas, e, o terceiro, um universo real, com um ator, de perto de 40 anos, e atrizes do Conservatório que vão entrar agora para o mercado de trabalho.

Poi isso, o que se vê em “A última estação” são “personagens vivas e mortas (…), que existiram, mas de quem não temos grandes referências, ou, pelo menos, referências tão palpáveis para poder desenvolver como as personagens bíblicas, e personagens reais que são os atores em cena”, precisou.

Com a “A última estação” Elmano Sancho regressa a um tema recorrente nas suas encenações: a inadequação do indivíduo à sociedade contemporânea, uma sociedade cada vez mais individualista onde o homem não encontra a sua voz.

E aí veio a inspiração para o título, a 15.ª e última estação da paixão de Cristo. Uma estação opcional instituída pelo papa João Paulo II, por achar que, na paixão de Cristo, não existia lugar para a esperança, a “ressurreição”.

“João Paulo II achava que a via sacra não se devia limitar às 14 estações — da condenação ao sepulcro de Jesus. E embora a 15.ª estação não entre em muitos rituais da igreja, nem na procissão da via sacra” acabou por dar título à peça, já que aborda a ideia de morte como “possibilidade de transformação”, “de reinvenção”, de “esperança”, explicou.

É como se fosse ressurreição que “não acontece na verdade, como se nunca existisse”, indicou. Porque “nunca sabemos o que aqui se passa, se é o Elmano, se é o Ted Bundy, se é Jesus”. “Começa-se com a história de Ted Bundy, entra-se na história da paixão de Cristo e na nossa própria história”, referiu o encenador, definindo a peça como “a história de um ator e encenador e de atrizes, à procura de construirem um espetáculo e de encontrarem essa esperança”.

É esperança que faz as pessoas caminharem, frisou, admitndo que a peça é também uma busca de si próprio.

“É, por um lado, o Elmano que está a chegar aos 40 anos e precisa de se reinventar. Por outro lado, é o ser humano, o indivíduo nesta sociedade que tem de encontrar, cada vez mais, a sua voz”, confessou.

A voz humana está cada vez mais diluída face à velocidade de informação a circular e à rapidez com que há que acompanha o ritmo vertiginoso das mudanças na sociedade, acrescentou.

Ao pôr estes dilemas em cena através da personagem de Ted Bundy, o autor socorreu-se da ideia de ‘dibbuk’, um conceito do judaísmo definido como a incorporação de um espírito do mal noutra pessoa.

Este conceito dá-lhe “a possibilidade de dizer em cena o que não é possível dizer na vida real”. É a incorporação teatral desse espírito, dessa personagem criminosa, que permite a Elmano Sancho “vomitar a cólera, a raiva e o desespero”, não só para mostrar o lado negro que cada ser humano encerra — “e que não é possível, e ainda bem, fazê-lo na vida real” -, mas porque através da arte o usa “quase como uma rebelião”, “contra tudo, contra a sociedade, contra nós próprios também”.

“Nós fazemos parte dessa sociedade”, acrescentou.

Autor e ator reconhecido e premiado, Elmano Sancho trabalhou em companhias como os teatros da Garagem, dos Aloés e Artistas Unidos.

Como encenador, tem procurado trabalhar com pessoas e situações “à margem da sociedade”. Fê-lo na estreou na encenação, em 2014, com “Misterman” (Enda Walsh), na criação seguinte, “I can´t breathe” (2015), menção especial do prémio da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, em “Não quero morrer” (2016), que escreveu, interpretou e encenou com a colombiana Juanita Barrera, e com o qual invocou atrizes esquecidas, afastadas de cena.

E volta a fazê-lo agora em “A última estação”, porque o teatro, a angústia, mas também o prazer e as interrogações que sempre acompanharam o ser humano continuam a estar-lhe coladas à pele.

“Nós nascemos e sabemos que vamos morrer. Como é que lidamos com isto? Como é que lidamos com a angústia de envelhecer, a perda da juventude, a perda da vitalidade?”

São estas as interrogações que Elmano Sancho deixa na peça que marca o 13.º dia do 35.º Festival de Almada, que termina quarta-feira.

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