A revolução de Fela Kuti nos corpos de Serge Aimé Coulibaly
A música de Fela começou a servir de pano de fundo para as criações de Coulibaly, aos poucos ameaçando ganhar protagonismo. Aé ao ponto em que o coreógrafo percebeu que teria de colocar o músico nigeriano no centro da sua criação: Kalakuta Republik é um dos pontos altos da programação do Festivalde Almada
Gonçalo Frota, in Público, 06 jul 2018 notícia online
No dia do seu 49.º aniversário, Fela Kuti teve poucas razões para celebrar. Foi a 15 de Outubro de 1987 que o Presidente do Burkina Faso, Thomas Sankara, foi assassinado. Fela, amigo de Sankara, havia de manifestar o seu pesar e classificar tal desaparecimento como “um terrível golpe na vida política dos africanos”, justificando que aquele era “o único [dirigente político] que falava sobre a união africana, sobre aquilo de que os africanos precisam para avançar na direcção do progresso”.
Apenas quatro anos no poder (1983-87), Sankara, teórico pan-africano de linhagem marxista, foi o responsável pelo novo nome de baptismo do país, trocando o Alto Volta (taxado pelos colonizadores franceses) por Burkina Faso. Fela Kuti via nele um dos raros políticos africanos capazes de enfrentar o status quo e agitar as elites, tomando o seu assassínio como a reacção desses privilegiados perante a ameaça da perda de influência. Em 1992, Fela homenageava Sankara em Underground system, tema em que declara a sua convicção de que aqueles que matam em nome da manutenção de um sistema corrupto podem ter-se desembaraçado do seu amigo, mas jamais seriam capazes de matar os ideais que motivaram a sua morte – os resultados da autópsia, passados mais de 30 anos, estão ainda por conhecer.
Serge Aimé Coulibaly tinha 14 anos quando Fela Kuti visitou o Burkina Faso, a convite de Thomas Sankara. E foi a figura de Fela que primeiro o cativou – antes sequer da música. “Na altura fiquei sobretudo intrigado por ele, mais do que apaixonado pela sua música – nesse tempo estava mais interessado no Michael Jackson e na Madonna”, ri-se o autor de Kalakuta Republik, um dos pontos altos da programação deste Festival de Almada (em cena esta sexta-feira, na Escola D. António da Costa, em Almada). Desse dia remoto, a memória do bailarino e coreógrafo guardou, antes de mais, a emissão especial da televisão do seu país, que fez do inventor do afrobeat o seu assunto “de manhã à noite”. Poucas figuras haveria então tão claras e activas no apelo a uma revolução africana contra os poderes corrompidos quanto o era Fela Kuti, identificado como claro inimigo de sucessivos governos na Nigéria. “E Thomas Sankara”, diz Coulibaly traçando a linha de união entre os dois, “foi aquele Presidente que alterou a vida no Burkina Faso em quatro anos, que mudou tudo e pôs na cabeça das pessoas que temos de ser o motor do nosso próprio desenvolvimento – era a personificação de uma força positiva que nos impelia para a frente.”
Essa linha que Coulibaly traça entre os dois, no entanto, só ganhou espessura anos mais tarde. Michael Jackson e Madonna deslumbravam-no, como é fácil de perceber, pelo lado performativo de uma pop destinada a cativar todos os sentidos, a inebriar a juventude com cenários onde tudo parecia possível. A música de Fela – quente, suada, pouco encenada e mediatizada, parida em noites em que a liberdade era inventada e reivindicada em lugares como o seu clube-templo, o mítico Afrika Shrine, na noite escaldante de Lagos – tinha um apelo mais longínquo do que a América, por não ser testemunhada ou vivida na pele. Essa linha só se tornou óbvia com a entrada do YouTube na vida de Serge Aimé. Foi ao vasculhar pelos labirínticos caminhos da plataforma de vídeos que descobriu um documentário dedicado a Fela, Music Is the Weapon, responsável pela total transformação da sua visão sobre o percurso do músico. “Esse documentário tornou-se uma bíblia para mim enquanto artista”, confessa ao Ípsilon. “A partir daí percebi que não se podia ser um artista em África e ser apolítico.”
Se a música de Fela começou a servir de pano de fundo para as criações de Coulibaly, foi, aos poucos, ameaçando ganhar protagonismo, até ao ponto em que o coreógrafo percebeu que teria de colocar o músico no centro da sua criação
A música de Fela Kuti foi-se, assim, infiltrando na obra coreográfica de Serge Aimé Coulibaly, desde que, em 2002, criou a sua estrutura, a companhia Faso Danse Théâtre em Ouagadougou. O afrobeat de Fela funcionava como impulso para os corpos que Coulibaly animava em palco, lembrando o coreógrafo de que, em cada peça, por mais que a linguagem fosse física e pudesse aproximar-se de um lado poético – que ensaiou enquanto bailarino com Alain Platel e Sidi Larbi Cherkoui –, havia um compromisso político a respeitar e a levar para palco. “Todas as peças que fiz desde a minha juventude ocupam-se de questões políticas”, confirma. “Porque, para mim, as grandes questões em África não são financeiras nem raciais, são puramente políticas.” E se Fela usava a música como um agente de mudança, então era também isso que Serge Aimé Coulibaly se propunha fazer com as suas criações coreográficas.
Se a música de Fela começou a servir de pano de fundo para as criações de Coulibaly, foi, aos poucos, ameaçando ganhar protagonismo, até ao ponto, em 2015, em que o coreógrafo percebeu que teria de colocar o músico nigeriano no centro da sua criação. Talvez porque Nuit Blanche à Ouagadougou, no ano anterior, tinha aproximado até ao limite realidade e criação artística. Depois de Solitude d’Un Homme Intègre (2007, em homenagem a Sankara) ou de Babemba (2008, em que recuperava quatro figuras fundamentais na História recente africana: Sankara, Nelson Mandela, Patrice Lumumba e Kwame Nkrumah), Nuit Blanche era um apelo indisfarçado à revolução, um espectáculo de sublevação que cruzava música, teatro e dança, contando com a participação do rapper Smockey.
Em palco, Smockey não escondia as palavras nem mascarava as suas intenções, desafiando bailarinos, actores e espectadores a lutar contra o regime de Blaise Compaoré. “Ele falou na cara do Presidente o que pensava, de forma muito directa, e foi banido de todas as rádios e televisões do Burkina Faso”, conta Coulibaly acerca do principal motivo para a colaboração entre os dois. Mas a retaliação não se terá ficado por aí – o seu estúdio foi destruído pouco depois por forças alegadamente próximas de Compaoré. Coulibaly queria esta força incendiária em palco. O que não esperava era que uma peça criada sob o desígnio da urgência de “fazer uma revolução e que tem de ser agora, não mais tarde”, localizada numa praça pública, encontrasse eco nas ruas decorridos apenas alguns dias sobre a estreia. E isto porque em Novembro de 2014, quando Compaoré se preparava para reforçar os seus poderes, três dias de revolta popular ditaram a sua capitulação.
Ficção e realidade
Kalakuta Republik vai buscar o seu título ao nome da comuna erguida por Fela Kuti nos arredores de Lagos, onde vivia com a sua família e os músicos da sua banda, e onde tinha construído um estúdio e uma unidade de saúde gratuita. Em 1970, o músico nigeriano declarou um estado de independência do restante território, em protesto contra a governação do país e reclamando a liberdade total para Kalakuta.
É esse espírito de absoluta liberdade que Serge Aimé Coulibaly tenta recriar na primeira parte de Kalakuta Republik. Até porque depois de comprar a obra integral do inventor do afrobeat, ter ouvido incessantemente o imenso património do músico durante um ano e comprado todos os livros que encontrou acerca do seu herói – “Não queria que alguém me perguntasse qualquer coisa sobre o Fela que eu não soubesse”, diz-nos –, empreendeu uma viagem à Nigéria para sentir na pele as noites do New Afrika Shrine. Esse contacto com a reconstrução do clube de Fela e o contacto com Seun e Femi Kuti (filhos do músico), haviam, no entanto, de retribuir-lhe com uma revelação – em vez de criar a partir da vida de Fela, deveria tomá-lo como inspiração. Em vez da biografia, a sugestão; em vez dos factos, as ideias.
A primeira das duas partes de Kalakuta Republik decorre, por isso, num ambiente de festa e de celebração de liberdade total. Há uma energia esfuziante nos movimentos dos bailarinos, uma leveza própria de corpos que não conhecem amarras e se relacionam de acordo com essa ausência de fronteiras e de regras. Quando estão em uníssono, o tom é quase de uma euforia colectiva. A segunda parte, com as cadeiras reviradas e o cenário de um possível Shrine claramente em ressaca, o tom é de languidez pós-festa, não menos sensual, mas em que as luzes baixam, os corpos desaceleram, as sombras instalam-se.
Se Nuit Blanche continha em si o prenúncio da mudança de ciclo político – consumado com a saída de cena de Compaoré e a ascensão de Roch Kaboré –, forçada por muitos artistas que estavam de microfone em punho na primeira linha, a mobilizar a juventude para a revolução, Kalakuta Republik reflecte nestes dois blocos o posicionamento político de Coulibaly face aos acontecimentos. Primeiro, a esperança e a crença na liberdade; depois, a necessidade de ser consequente e não deixar que essa esperança degenere em falhanço. “A esperança é morta muito rapidamente”, aponta. “É algo que vemos acontecer em África a toda a hora. Vemos alguém aparecer, fazer um bom discurso, prometer que mudará o estado das coisas, e depois tudo falha e é terrível.”
Afinal, Fela Kuti morreu em 1997 e África não mudou tanto quanto Coulibaly acredita que seria desejável. “Claro que muitos dos antigos ditadores morreram e temos sociedades um pouco mais democráticas”, concede. “E eu sei que apesar de muitos países terem eleições, estarem a crescer as classes médias e as mudanças a terem lugar, começámos muito mal e precisamos de tempo.” Dito isto, no entanto, o coreógrafo questiona a forma como esta transição, em muitos casos, tem sido um autêntico logro, “substituindo franceses, ingleses e espanhóis por africanos, mas sem mudar o sistema”. Uma mudança de cabeças sem efectuar a limpeza necessária para tratar sociedades construídas sobre pressupostos de corrupção que foram mantidos.
O combate, no entanto, passa também pela projecção para o exterior, diz. Serge Aimé recorda-se bem de quando visitou Los Angeles pela primeira vez e a sua cabeça ia cheia de edifícios sem fim, automóveis imaculados a prometer vidas desafogadas e estrelas de cinema a cada esquina. E voltou para o Burkina Faso chocado com a quantidade de gente que viu a dormir nas ruas ou a abastecer-se desesperadamente no lixo. Daí que os bailarinos de Kalakuta surjam em palco com pinturas tribais, em choque com o vestuário pouco étnico, criando uma fricção entre essas imagens tipificadas e preguiçosas, e a realidade do continente. “Por vezes sinto que África é uma ficção”, diz Coulibaly. E o seu trabalho é também esse: o de mudar o que África é e pode ser para quem assiste de longe e para quem vive naquela terra quotidianamente. Para que a ficção possa, afinal, emanar um desejo de realidade. Para que uma possa cada vez mais parecer-se com a outra.
O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada