A Lei de Murphy

Rui Monteiro in Público 20 Fevereiro 2022

O desejo, o amor e o poder, princi­palmente quando derivam de deu­ses, há muito que são usados, ora como sujeitos, ora como pretextos, para ajudarem a reflectir o que tra­zem por arrasto. Coisas como a vir­tude ou a lealdade, ou a relação com o divino, ou a inocência e a manipu­lação, ou o lugar socialmente desti­nado à mulher nas sociedades patriarcais, ou o sacrifício, ou o des­potismo e a injustiça simples e crua tomaram-se temas correntes, a bem dizer, desde que o teatro é teatro e, nos melhores casos, universaliza­ram-se, resistindo ao tempo, vivendo se calhar para além dele, como acon­tece a esta peça estreada em 428 a.C. que a encenação, como quem não quer a coisa, procura aproximar da actualidade.

Para levar a água ao seu moinho, Eurípides (484-406 a.C.), o último dos grandes trágicos atenienses, depois de Ésquilo e Sófocles, engendrou este trama partindo da rivalida­de entre duas deusas à cata de cati­varem o mesmo humano para, por assim dizer, a sua causa. Hipólito (Cláudio Silva), porém, é um osso duro de roer para Afrodite (Sofia Cor­reia), a deusa do amor, porque, fran­camente, curto e grosso, é um misó­gino. Casto praticante com orgulho e sem vergonha na cara, crente, melhor, praticamente beato da deusa da caça, Ártemis (Joana Francam­pos), enfrenta e afronta Afrodite. Esta, que tem pouca tolerância para o desdenho, não é de modas e vinga­se, incutindo em Fedra (Teresa Gafei­ra) uma paixão pelo rapaz. Ora, acon­tece que Fedra é mulher de Teseu (Marques d’ Arede), pai de Hipólito, e uma paixão de madrasta por entea­do é sempre um berbicacho. Mesmo quando esta, respeitando as conven­ções que ditam o seu papel social, ama à distância, em segredo, que afinal vai confidenciar à Ama (Elsa Valentim) e a serva revelar ao patrão, que surge do nada para, pensa, pôr tudo em pratos limpos.

A partir deste momento o enredo entra em modo Lei de Murphy e tudo o que pode correr mal vai correr realmente mal. Fedra, obrigada pelo preconceito que, aliás, aceita, cobre­se de vergonha, consome-se em remorso e só encontra saída no sui­cídio. E, na vingança, deixando escri­to como Hipólito a violou, falsidade em que Teseu acredita e usa como motivo para expulsar o filho de Ate­nas, para vir mais tarde a saber que é tudo mentira, uma teia tecida por deusa de maus fígados. Tarde de mais, pois Hipólito, vítima de aciden­te de viação, já não vive para poder ser redimido.

Também para levar a água ao seu moinho, a encenação do experiente Rogério de Carvalho (que já aborda­ra o mito de Fedra, mas na versão de Jean-Baptiste Racine, em 2006, com Teresa Gafeira igualmente no papel da protagonista) recorre a um dispo­sitivo cénico imponente, dominado pelo cenário de José Manuel Casta­nheira, criando uma atmosfera claus­trofóbica com a ajuda da discreta e ajustada iluminação de Guilherme Frazão, a densa sonoridade criada por Daniel Mendrico e a inspiração simbolista dos figurinos de Mariana Sá Nogueira. Imponente, eficaz, con­tando com desempenhos aqui e ali em regime de sobre-representação, mas ainda assim equilibrados e com­petentes, Carvalho optou pelo con­servadorismo na sua criação, de certo modo privilegiando a forma sobre a substância, assim apresen­tando uma peça bonita, agradável de ver, todavia, incapaz de ultrapassar o óbvio e encontrar um discurso cénico original, ou pelo menos pre­nhe de alguma ousadia capaz de ler de maneira contemporânea a – diga­mos – mensagem inscrita nos inters­tícios do original.

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