A invejosa, a invejada e o cata-vento

É entre a inveja e o poder, mas também a ciumeira de classe e o lirismo do amor romântico, que se desenrola a trama de «Nem Come Nem Deixa Comer», em cena até domingo no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada.

Rui Monteiro in Público 03 Dezembro 2021 | notícia online

Nem Come Nem Deixa Comer

Autoria: Lope de Vega
Encenação: Ignacio García
Pela Companhia de Teatro de Almada
Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada
Até 5 de Dezembro

Será por a galinha do vizinho ser mais gorda do que a nossa, ou por a relva ser mais verde do outro lado da sebe que separa os jardins próprio e alheio, ou por, devido à sua natureza, a humanidade ambicionar sempre mais do que tem ou merece? Seja como for, o papel da inveja – por muito mal-afamado que seja – não é negligenciável no comportamento de homens e mulheres, principalmente nas sociedades hierarquizadas, que são, a bem dizer, todas as que conhecemos. Há quem afirme até a inveja como o verdadeiro motor do progresso e da evolução, recusando a versão corrente e moralista que nela vê defeito de carácter. Pois é entre a inveja e o poder, mas também a ciumeira de classe e o lirismo do amor romântico, que se desenrola a trama de Nem Come Nem Deixa Comer, comédia de desencontros e resolução improvável que Ignacio García encena em Almada.

É de O Cão do Hortelão, a comédia de enredo mais famosa – muitos dizem que a mais perfeita – escrita por Lope de Vega (1562-1635), que nasce esta versão de leitura feminista (temperada pela poesia, enxertada no texto, das contemporâneas do dramaturgo espanhol Ana Caro, Juana Inés de la Cruz e Maria de Zayas) e interpretação liberal, porém respeitosa do original. O título (expressão espanhola sobre o cão de um hortelão que tão empenhado está em defender a colheita e impedir outros de a comerem que se esquece de comer; mais ou menos correspondente, neste contexto, ao dito português “nem coisa nem sai de cima”) diz logo ao que vem.

E o que vem é, aliás, relativamente simples de contar: Diana (Margarida Vila-Nova), condessa napolitana carregada de pretendentes da sua classe que vai descartando como rotina, está embeiçada pelo seu secretário, Teodoro (David Pereira Bastos), por sua vez caído de amores correspondidos por Marcela (Ana Cris), dama de companhia da aristocrata. Ora, quando Diana descobre para onde cai o coração do secretário entra de imediato em modo de ciumeira aditivada por sentimento de classe e desejo de posse. E é clara no seu objectivo, acenando ao empregado um lugar no elevador social que seria a sua relação. Este cai no ardil, desprezando Marcela, entregando-se à condessa, que de pronto o desdenha, pois não era seu objectivo, por assim dizer, comer, mas sim evitar que outra comesse. Postas as coisas assim, parece cru. Mas há mais, que Vega não era nenhum tonto e sabia muito bem como um gesto simples esconde sentimentos intricadamente complexos, o que o seu texto expõe com minúcia, irónica graça e cómico desembaraço até o ardiloso Tristão (Teresa Gafeira) encontrar uma solução e a encenação poder levar a peça a um desenlace feliz.

Marcela (Ana Cris) e Teodoro (David Pereira Bastos) são o par amoroso ameaçado nesta peça de Lope de Vega (foto: RUI MATEUS)

Ignacio García, sem ser original ou ousado, ou sequer arriscar grande coisa dramatúrgica e cenicamente, mas contando com a competência dos actores (a que ainda se juntam Diogo Bach, Leonor Alecrim e Vera Santana), e especialmente com o empenho dedicado de Ana Cris e David Pereira Bastos, usando o bonito e florido cenário de José Manuel Castanheira, e manipulando habilmente as sugestões da iluminação desenhada por Guilherme Frazão, constrói uma fábula trabalhando o jogo de equívocos, não ditos e invejas chãs inscrito no original. A encenação explora as manigâncias e as contradições do amor, deixando no ar interrogações sobre se podemos amar sem nos cansarmos de quem amamos, ou se somos realmente altruístas quando amamos – como supomos, ou pelo menos desejamos –, ou simplesmente egoístas perseguidores do desejo. Para, de certo modo, concluir, evitando a tentadora moral, que os sentimentos humanos se movem por caminhos misteriosos, quando não indecifráveis.

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