A grotesca guerra do consumo, segundo Toni Cafiero

Durante o próximo mês, o Teatro Joaquim Benite, em Almada, recebe Shitz, peça de Hanoch Levin que o encenador descreve como “uma tragicomédia musical”, agora que a comédia está do lado da realidade.

Gonçalo Frota in Público, 30 Abril 2021 | notícia online

A realidade, acredita o encenador italiano Toni Cafiero, tornou impossível a vida da comédia. A comédia como género teatral explorado por Molière ou Goldoni, em que costumes e factos eram chocalhados e expostos ao ridículo, mas que o tempo condenou a uma existência disfarçada em cima dos palcos. “A comédia era um género que, à época, conseguia falar do que se passava”, comenta Cafiero, a dias de estrear no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada (de 30 de Abril a 30 de Maio), o seu olhar sobre Shitz, do israelita Hanoch Levin. “Era um tempo em que criticar o poder podia ter de se pagar com a prisão. O problema hoje em dia é que a realidade é muito mais cómica do que aquilo que se faz em teatro. Como é que se pode competir com Donald Trump?” E quem fala no antigo Presidente dos Estados Unidos, diz, fala também de uma certa dimensão cómica presente na actual pandemia. “A realidade é de tal forma paradoxal e absurda”, continua, “que se torna difícil para o teatro. Eu faço parte daqueles que pensam que hoje em dia a comédia não existe.”

A televisão, a realidade, os amigos são para rir. Ao teatro deve estar reservado um lugar de estimulação de pensamento

Toni Cafiero, encenador

A questão sensível, frisa o encenador (que volta a trabalhar com a Companhia de Teatro de Almada depois de ter dirigido O Feio em 2016) é a expectativa do público quando se dirige a uma sala para assistir a uma suposta comédia. Cafiero diz não ser “contra o riso”, mas entende que o lugar do teatro não é esse. “A televisão, a realidade, os amigos são para rir”, diz, enquanto ao teatro deve estar reservado um lugar de estimulação de pensamento. Esta interrogação, se é hoje possível fazer comédia, coloca-se a propósito de Shitz. Apresentada como comédia familiar — o italiano prefere chamar-lhe “tragicomédia musical” —, a peça de Hanoch Levin, escrita em 1974, tem lugar entre dois períodos de guerra, a Guerra dos Seis Dias e do Yom Kippur. E coloca-nos diante de pai (André Pardal) e mãe (Diogo Bach) firmemente empenhados em casar a sua filha (Érica Rodrigues). Tão desesperados, na verdade, que o pai cede em toda a negociação do casamento com o futuro genro (Pedro Walter).

Tcharkas, o futuro genro, anuncia que a sua convicção de que encontrou em Shpratsi a sua alma gémea terá de ser acompanhada pelo pagamento da boda (comida, orquestra, roupa e flores) a cargo da família da noiva, assim como o custeamento pelo futuro sogro de um apartamento de três quartos na cidade, um automóvel e 200 mil liras em dinheiro. A menos do que isto Tcharkas não poderá chamar amor. O noivo, pela sua parte, compromete-se em comparecer ao casamento.

Mundo globalizado

“Tudo é negócio”, sustenta Toni Cafiero. Até porque nesta sua encenação do texto de Levin, Cafiero optou por passar uma borracha sobre as referências à guerra. “A guerra existe, claro, mas parece-me muito retórico falar de guerra hoje em dia na Europa”, diz. “Esta guerra dos fuzis, das bombas e dos canhões já não existe aqui.” Daí que, agarrado às figuras grotescas das personagens, de corpos insuflados, venha uma guerra que é, afinal, “uma guerra pelo consumo”. “Estamos a falar da new age do capitalismo financeiro”, defende o encenador. “Creio que Levin intuiu que seria esta a doença a demolir-nos depois. Lembremo-nos que na última crise foi um pequeno banco dos Estados Unidos a levar a Europa à falência. E o que temos nós a ver com os Estados Unidos? O mundo globalizado é assim e se escondi um pouco a guerra foi para iluminar mais o consumismo, o dinheiro e a carreira como únicos ingredientes nesta vida.”

Entrecortando com pequenos segmentos de vídeo que vincam a história de manipulação e exploração do pai Shitz que vemos desenrolar-se em palco, Toni Cafiero vai sublinhando um tom que pretende criar um fosso na relação com a realidade. O arsenal de canções (com composição de Ariel Rodríguez) que, com frequência, irrompe pela peça ajuda à criação desse mundo (a)berrante, sem subtilezas, em que a fricção geracional leva a que Shpratsi adira também à subjugação do pai e acabe por declarar-se indisponível para abdicar do seu bem-estar. “Pura e simplesmente não sou capaz”, diz. “A minha mãe mimou-me tanto na infância, deu-me tudo o que eu pedia, metia-me as bananas na boca e limpava-me o rabo, que eu saí uma peste. Agora paga as favas, velha! E pede perdão por a tua filha não ser capaz de se sacrificar.”

No meio de tudo isto, não faltam, ainda assim, momentos capazes de provocar o riso. Mas é um riso cínico, diante de uma disformidade muito para lá dos corpos. E uma vez silenciada a gargalhada, é preciso reconhecer o imenso vazio que se instala.

mostrar mais
Back to top button