A comédia da humanidade

Um megalómano, narcisista, misógino e viciado em teatro, «perversidade com milhares de anos».

A súbita impressão de chegar ao salão de festas duma velha sociedade recreativa, espera o público, passando do foyer do Teatro de Almada à sala principal, onde a companhia residente estreia amanhã O Fazedor de Teatro de Thomas Bernhardt, tradução de Palma Caetano (que vem de Viena lançar o livro/Assírio & Alvim). A peça tem encenação de Joaquim Benite e Morais e Castro no protagonista Bruscon (até Março, dia 14). Jean-Guy Lecat construiu um espaço cénico de raiz, em minúcia: chão, tecto, tudo (ver texto abaixo).

Julgamo-nos no interior duma relíquia de cidade de província. É a sala multiusos (festas, refeições…) duma hospedaria austríaca, em 1984 e ainda com retrato de Hitler entre quadros manhosos. Aí decorrem os diálogos, diluídos em monólogos de Bruscon, n’O Fazedor de Teatro, cuja acção, como é usual no escritor, se frustra no alvo a atingir. Sem ir mais longe, recorde-se A Força do Hábito, última peça de Bernhardt em Lisboa, pel’A Truta (Comuna, 2003), com Diogo Dória num músico director de circo, primo direito do actor, dramaturgo e director teatral Bruscon, que anda em digressão e chegou, com a família de actores(mulher/Manuela Costa, filho/Miguel Martins e filha/Maria Frade), para estrear a sua peça, «a comédia da humanidade».

Um megalómano, narcisista, misógino e viciado em teatro, «perversidade com milhares de anos». Mais uma vez Thomas Bernhardt (1931-89) utiliza, acentua Benite, «o universo do teatro como metáfora do mundo, para falar do Homem e suas angústias, da comédia da vida que afinal é tragédia». Pelo conhecimento desse universo, o «lado oficinal da peça» e a sua «reflexão muito ampla», queria fazê-la. «Passámos por digressões em lugares assim, com sonhos de grandes espectáculos que não o foram», lembra. «Há também uma reflexão sobre o dramaturgo, o criador, a arte, com a amargura inevitável de a criação resultar em fracasso», nota ainda, concluindo que «a arte é a alternativa ao suicídio, na dicotomia entre a vida e o absurdo da morte». No elenco (também Francisco Costa, Teresa Gafeira e Cátia Ribeiro), deu o protagonismo a Morais e Castro, que dirigira em 2002: «Precisava dum actor assim numa peça com tanta referência.»

O textofoi veículo, como outros, para o autor destilar uma revolta amarga contra a Áustria (escândalo, ameaça censória), «cloaca, abcesso da Europa», «grotesca, tacanha: em parte nenhuma se encara a arte com uma estupidez assim», acusa Bruscon. O encenador vê aí mais a denúncia da «mesquinhez, persistência de sinais ideológicos para lá da queda dos regimes, e de ideias inculcadas por sistemas autoritários».

O também director do Festival de Almada, ao qual, em 2003, trouxe espectáculo da Stan (Tout Est Calme) baseado em romance de Bernhardt, terá o seu Emmanuel Kant no de 2004, encenação de Robert Planchon no CCB.

Elisabete França
in Diário de Notícias, 4 fev 2004

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