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A luta pelo poder num estúdio de gravação
A Bunda Preta da Chuvinha pega em Ma Rainey’s Black Bottom e trá-la da Chicago dos anos 20 até à Margem Sul de hoje. No Teatro Joaquim Benite, até 1 de Dezembro.
Gonçalo Frota in Público 13 Novembro 2024
Os músicos já estão em estúdio à espera de Chuvinha, cantora-fenómeno afro beats / hip-hop, prestes a gravar mais um par de temas que promete mantê-la nos tops de streaming e continuar a fazer dela uma estrela nacional. Mas, à falta de Chuvinha, à falta da mais imediata figura de poder, desce-se um degrau na busca por protagonismo e por ascendente sobre os restantes, e deflagra o braço-de-ferro entre quem deverá ser o autor do arranjo do próximo hit (a canção A bunda preta da chuvinha) a ser registado. Quando Chuvinha (Djucu Dabó) finalmente chegar, acompanhada da sua entourage (Érica Rodrigues e Ivo Marçal), há-de reclamar esse poder e exercê-lo sem pejo sobre os músicos (Pedro Walter, João Farraia, Duarte Grilo, Anilson Eugénio e Afonso de Portugal), sabendo, ainda assim, que se encontra num plano intermédio desta pirâmide, encimada por um produtor (João Cabral) e um manager (Diogo Bach).
Chuvinha é uma mulher negra; o produtor e o manager são homens brancos. E A Bunda Preta da Chuvinha, até 1 de Dezembro no Teatro Joaquim Benite, Almada, é uma adaptação de Ma Rainey’s Black Bottom, peça de August Wilson, estreada em 1984, em torno de uma cantora de blues.
Foi todo esse jogo que interessou a Rodrigo Francisco, a ponto de querer reescrever e encenar o texto de Wilson, transpondo a acção da Chicago dos anos 20 para a Margem Sul do Portugal de hoje. “A peça original é muito sobre o poder”, contextualiza Francisco ao PÚBLICO. “É sobre a semente dos direitos civis da população negra nos Estados Unidos. “E é sobre o poder porque os músicos entram em conflito entre si, em vez de dirigirem a sua frustração para cima, na direcção daqueles que detêm os meios de produção – numa linguagem mais marxista. Acho que August Wilson quando escreve a peça está a dizer isso muito claramente: meus amigos, vocês têm um adversário comum, juntem-se para o combater e não se dividam.”
Numa outra leitura, propõe o encenador, é também esse o diagnóstico que faz do combate ideológico actual entre esquerda e direita, acusando a esquerda de estar “mais preocupada em encontrar diferenças entre as várias facções do que em perceber que ainda há gente pobre”.
É isso que Rodrigo Francisco põe as suas personagens a dizer, por mais que se encontrem num estúdio bem equipado e a lidar com uma estrela pop que encherá as carteiras de alguns, mas não as suas. “E o que nós somos todos?”, pergunta um dos músicos. “Um bando de esfomeados, a fingir que somos bosses.” Não há bling bling ou ostentação de marcas que alterem essa realidade, defende Francisco. Porque a história que se conta em A Bunda Preta da Chuvinha é a de “um bando de esfomeados” que nunca sai, verdadeiramente, do gueto. “É-lhes proporcionada a ilusão de que saem de lá se tiverem uns óculos da Gucci ou se guiarem um Tesla”, explica o autor e encenador. “É esse o imaginário a que estão constantemente sujeitos, nos videoclips e nas redes sociais, a imagem do tipo rico e que se deu bem porque tem um objecto de culto ou a namorada troféu.” Mas é apenas uma ilusão.
Daí que estas personagens se comportem de forma caricatural, emulando exemplos sorvidos em ecrãs, contaminadas por sonhos de grandeza que, depois, esbarram na subserviência à voz do produtor, aquele que se arroga saber dos gostos do público e ao qual todos se vergam.
Histórias cantadas
Rodrigo Francisco cruzou-se pela primeira vez com Ma Rainey’s Black Bottom numas longínquas aulas de inglês, na Escola Secundária Anselmo de Andrade, em Almada. O professor propôs à turma que lessem a peça de August Wilson, mas o então estudante não percebeu o texto (escrito num calão inglês difícil), não tinha nenhum interesse particular por blues e desinteressou-se. Até que, há uns anos, o dramaturgo de hoje voltou à peça, e aconteceu-lhe estar a lê-la e a imaginá-la logo a ganhar vida em cena. Pela linguagem extremamente musical que a peça implica, o seu pensamento imediato foi o de a reescrever, pensando-a para o público mais jovem da Companhia de Teatro de Almada, aproximando a situação de uma música que – ao contrário dos blues na sua adolescência – lhes seja familiar.
Esta decisão levou a uma outra, central para o espectáculo. Ao invés dos textos com que August Wilson pontuava o original, em que cada uma das personagens se apresentava e falava do seu mundo, representando “tendências diferentes do movimento dos direitos civis – um era mais religioso, mais Martin Luther King, outro mais politizado, mais Malcolm X, outro não aceitava nada aquilo” –, Francisco aproveitou apenas a estrutura dos conflitos e deslocou o retrato das personagens para canções, compostas e tocadas ao vivo (com os actores) por Afonso de Portugal. “É pela música que vamos tendo acesso àquilo que eles são”, diz o encenador, “mantendo-se o espírito de representarem tendências diferentes”.
Com uma pesquisa que envolveu o livro Hip Hop Tuga, de Ricardo Farinha, e várias entrevistas a músicos portugueses, Rodrigo Francisco recria uma peça que, já não lidando com a segregação racial do texto de Wilson, aponta às mesmas questões de luta de classes e de poder. A música acaba por ser a banda sonora e um espelho de como um par de casos de sucesso que conseguem a ascensão social apenas alimentam a ilusão de que é possível para todos.