A ferida ainda aberta da Guerra Colonial

Rui Monteiro in Público 12 Outubro 2021

Um helicóptero sobrevoa a plateia. Sente-se a deslocação do ar como um arrepio, o ruído das pás afastando-se, deixando na selva que agora é o palco um soldado em agonia e outro em lágrimas. É uma memória que o tempo devia esvanecer, mas que fica cativa até ao momento em que por alguma razão, um ruído, uma frase, um olhar de soslaio, regressa crua e violenta. Como a este homem que vai almoçar ao sítio do costume e num repente parte a loiça toda.

Desta vez foi o divórcio. Afinal, foram 47 anos anulados por um acto burocrático e frio, para no fim ver o filho afastando-se com a mãe como quem vê o passado a esfumar-se. Um homem que pergunta “O que é que um gajo há-de ir fazer a seguir a divorciar-se?”, e que mal chegado ao restaurante, como um alucinado, desata a falar da guerra, uma coisa passada há décadas, mas que na memória de um “cacimbado” vem em revoadas e dura para sempre. Trauma, dirá um psiquiatra. Dor, responde um ex-combatente sem sequer pensar. E Luiz Vicente, que interpreta exemplarmente este homem há muito em queda, é a imagem desse padecimento que rói o cérebro como uma moinha e desgasta o pensamento entre memórias e dúvidas, abatendo o espírito, com ele levando o corpo, ou pelo menos o que dele resta funcional.

Mais tarde, vamos encontrá-lo com antigos camaradas, vamos estar com eles na mata. Trocam chistes, riem-se das suas figuras nas fotografias baças pelo tempo, até numa delas surgir alguém que já se foi e sobre o grupo cair uma bruma que deixa os rostos subitamente duros e as recordações a pintarem-se de negro e de medo. Um homem não chora, dizem, mas a verdade é estes antigos soldados de uma guerra que em grande parte lhes era alheia chorarem, muitas vezes em silêncio, sem compreender como passaram de heróis de um regime a vilões de uma democracia, antes de se tornarem uma espécie de párias. E ainda nem confrontados foram com o seu papel nessa guerra, visto pelo olhar da namorada do filho do protagonista, uma inglesa de origem africana, em trabalho de pós-doutoramento, partindo de um pressuposto histórico moderno entender o colonialismo.

O texto e a encenação de Rodrigo Francisco (n. 1981) nasceram do testemunho de ex-militares que combaterem em alguma das guerras que Portugal promoveu em Angola e Moçambique e na Guiné nas décadas de 1960 e 1970.

Articulando passado e presente, o autor (com a generosa interpretação de Luís Vicente, Afonso de Portugal, também responsável pela música interpretada ao vivo, João Farraia, Pedro Walter e Lara Mesquita, mais a criativa cenografia de Céline Demars e a iluminação de Guilherme Frazão) dá-lhes uma voz, mas não é seu portavoz, como também não representa a perspectiva algo maniqueísta da investigadora, nem aceita o esquecimento. A sua peça é antes como uma grande interrogação, melhor, uma exposição de factos contraditórios, muitas vezes con?ituosos, sujeitos de muitas análises, todas incapazes de encontrar uma razão objectiva do mal-estar que a guerra colonial causa 50/60 anos depois – e onde se vê ainda o pus na ferida rasgada e sem cura por muito que se esconda na memória colectiva.

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