A heroína improvável

Rui Monteiro in Público, 27 Julho 2021

Crítica de Teatro
Molly Bloom

Durante 17 dos episódios de Ulisses, sobre Molly Bloom sabe-se ser mulher do protagonista e pouco mais. Porém, o episódio final do livro, ao dar-lhe a palavra, revela uma mulher que aproveita a insónia para num turbilhão de pensamentos avaliar a sua vida ao lado de um homem que não lhe toca nem a larga, e, com equivalente dose de rancor, alegria, humor e amargura rever a sua existência, os seus desejos, o prazer que deles tirou ou não, as lições que aprendeu e as que recusou, revendo as particularidades dos homens que por ela passaram e com quem, na carne umas vezes, outras na sua imaginação, privou.

É um relato de qualidades e de defeitos e de idiossincrasias sexuais, próprias e dos seus amantes, plasmadas do ponto de vista feminino, sem papas nem preconceitos na língua, transpostas na criação de James Joyce (1882-1941) sem uma vírgula, um ponto final, um travessão que seja, enfim, qualquer sinal de pontuação que permita ao leitor respirar ao longo de umas boas dezenas de páginas. Um ?uxo de consciência – provavelmente o mais conhecido e famoso e estudado da literatura ocidental – que não só encerra a obra-prima do escritor irlandês como a transforma ao ponto de alterar a sua perspectiva, revelando as contradições que Leopold Bloom foi demonstrando ao longo de cada um dos episódios anteriores, nos quais, enquanto descreve esse dia vulgar de 16 de Junho de 1904, em Dublin, aos poucos e quase insidiosamente, entre muitas outras características, se percebe ser um esposo que, após uma década sem intimidade, continua a nutrir pela mulher uma adoração que o consome tanto como o conhecimento da sua infidelidade.

Quase um século depois, o mais – como dizer? – sulfuroso capítulo de Ulisses já não é uma escandaleira nem a obra que conclui é vítima de censuras morais, tendo, aliás, ascendido à categoria de monumento literário. Todavia, o longo e a bem dizer demencial monólogo de Molly Bloom, embora já não seja lido como uma blasfémia obscena e uma ordinarice pegada, mantém a singularidade do seu conteúdo provocatório, mergulhando sem hesitação na visão interior de uma mulher sem nada de especial.

É esse olhar, na sua franqueza vividamente alucinada, que Viviane De Muynck (a consagrada actriz belga que, no Festival de Almada, protagonizou O Quarto de Isabella, em 2018, e Guerra e Terebintina no ano seguinte) interpreta e encena (a meias com Jan Lauwers) como uma heroína improvável: uma mulher comum, sem pudores nem tabus nem arrependimentos que, em privado, sem querer, se auto-analisa com mais eficácia e precisão e sensibilidade que um psicanalista experimentado. Sem precisar de mais do que uma mesa e umas cadeiras, sob a luz crua desenhada por Ken Hioco e Lauwers, cabe à actriz, como se costuma dizer, carregar a peça às costas. Costas, também como se costuma dizer, largas o bastante para a sua interpretação realçar a lucidez obscura da personagem e fazê-la brilhar entre a escuridão e o desespero que emana do original através dos tons da voz, dos movimentos do corpo, dos esgares que lhe transformam o rosto revelando tanto o lado mais negro da personagem como a sua luminosidade encandeante.

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