Édouard Louis : “Não há nada mais revolucionário do que a verdade”

Foi o teatro a salvar Édouard Louis e foi no Festival de Almada que o encontrámos. Conversa com um dos mais estimulantes escritores europeus contemporâneos, em combate contra a homofobia e a sentença classista.

 in Público, 23 Julho 2021 | notícia online

Cruzámos caminhos com Édouard Louis no Teatro Municipal Joaquim Benite, durante a rápida passagem do escritor francês pelo Festival de Almada, ocasião em que dois textos seus (Quem Matou o Meu Pai, em encenação de Ivo van Hove, e História da Violência, dirigido por Ivica Buljan) foram levados a palco. E assim, um dos mais estimulantes jovens romancistas europeus, tornava-se figura de absoluto destaque da 38.ª edição do festival, sublinhando o quanto os livros crus, directos, inquiridores e perturbadores de Édouard Louis foram acolhidos pelo meio teatral, consagrando-o como um dos seus. A passagem não seria mais prolongada porque, dias depois, se apresentaria na Bienal de Veneza, subindo ao palco como protagonista da versão que trabalhou com o alemão Thomas Ostermeier de Quem Matou o Meu Pai. Nessa mesma noite em que o encontrámos, em Almada, assistiria ainda ao espectáculo montado por Buljan. Mas estaria na sala apenas o suficiente para demonstrar o seu respeito pelo trabalho do encenador e dos actores. História da Violência narra um episódio a que não quer voltar – descreve a noite de Natal em que, depois de um encontro fortuito com um desconhecido na rua, os dois sobem ao apartamento do escritor para passarem a noite juntos, mas a situação acaba por descambar em violência e o agressor viola e quase mata Édouard.

História da Violência seria a segunda obra publicada de Édouard Louis, em 2016, tinha então 23 anos. E confirmava o quanto a escrita incandescente do francês, autobiográfica, revelando e lidando em permanência com uma infância e uma adolescência em que foi alvo de uma incessante homofobia, e com uma circunstância de vincada precariedade numa das regiões mais pobres de França, a Picardia, revolvia no íntimo e no político em simultâneo, tornando a sua luta pessoal enquanto homossexual de uma classe operária humilhada e asfixiada o seu combustível literário. Destapava também uma escrita fulgurante, de alguém que até terminar o ensino secundário nunca tinha lido um livro (o primeiro viria a ser Regresso a Reims, de Didier Eribon, clara inspiração para o seu arranque), e descobriu na literatura um veículo de expressão torrencial, a bordo da qual a sua vida podia ser retratada tal como era.

Começou por discorrer sobre essa noite de violência, mas em que lhe interessava também reclamar a história nos seus termos, depois de a ver descrita num auto policial a transbordar de homofobia e racismo (Reda, o homem de origem argelina que o violara, era praticamente reduzido a um pleonasmo entre árabe e agressor), tendo-se estreado, antes disso, com um relato arrasador dos seus anos de “prisão” na Picardia e da fuga de uma pequena cidade que só poderia matá-lo aos poucos em Acabar com Eddy Bellegueule (renunciando, assim, ao seu nome de nascimento). Depois, em 2018, veio Quem Matou o Meu Pai. Desafiado pelo actor e encenador Stanislas Nordey, escrevia pela primeira vez com o teatro em mente, abordando o reencontro com o seu pai quando, num breve regresso a casa, se viu diante de um homem desfeito, com as costas destruídas por um acidente na fábrica onde trabalhava. Era a vez de colocar na mesma balança a homofobia que sempre sofrera às mãos do seu pai e a violência infligida pelo Estado a um homem que abandonara e explorara sem compaixão.

Édouard Louis no Festival de Almada, onde foi uma das figuras em destaque com dois textos seus levados à cena, confirmando a sua íntima relação com o teatro Luana Santos

Vai estar de novo em palco com Quem Matou o Meu Pai. É-lhe estranho colocar-se num cenário mais propenso à ficção mas no qual, afinal, instala a sua própria história?
Aquilo que sinto é que o Thomas Ostermeier compreendeu a minha vida melhor do que eu [risos]. Lembro-me de estarmos a ensaiar e ele dizer-me coisas sobre o texto – um texto que escrevi sobre a minha própria experiência e sobre o meu pai – que eram tão verdadeiras e que eu nem conseguia ver. Não é estranho porque a história da minha vida é muito teatral. Contei-a no meu primeiro livro, Eddy Bellegueule [que a Elsinore, sua editora portuguesa, publicará no primeiro trimestre de 2022, esgotada que se encontra a edição original pela Fumo] . Fui um miúdo homossexual num meio muito homofóbico de classe operária. Era-me muito duro ser gay e procurava desesperadamente um lugar onde as pessoas me valorizassem. Inscrevia-me em todas as actividades na escola – clubes de xadrez, de caligrafia, de comédia, ia para todos os clubes porque estava sozinho durante os intervalos e tentava encontrar uma maneira de ser valorizado. Isto numa escola onde toda a gente me chamava “paneleiro”. Tentei tudo para ser amado e nada funcionou. Até que criaram um clube de teatro, fui e pela primeira vez na minha vida – tinha 12 ou 13 anos – as pessoas olharam para mim positivamente e gritaram ‘Bravo, bravo!’ Estes ‘bravos’ permitiram-me recuperar de todo o ruído dos insultos. Não sabia nada de teatro, nunca íamos ao teatro em família, nunca tinha lido uma peça, não sabia que a Isabelle Huppert existia, não sabia que Molière tinha existido. Queria apenas ser amado. A partir daí pensei que talvez estivesse aí a minha fuga. Depois fui para o teatro no ensino secundário e isso levou-me a ler livros e a escrever. Mas acho que isto também está profundamente ligado à minha identidade homossexual, porque não tinha alternativa a desempenhar papéis a toda a hora, para me proteger, para não ser tão insultado, para tentar ser mais masculino, menos feminino. O que pode ser muito belo no teatro é que acolhe até pessoas que nada sabem de teatro. A literatura ou a filosofia são muito mais excludentes, não se entra com esta facilidade. Nem sequer tinha de adorar o teatro para ser salvo pelo teatro.

O próprio escritor protagoniza Quem Matou o Meu Pai na encenação de Thomas Ostemeier estreada em Paris e apresentada depois na Schaubühne, Berlim, e na Bienal de Veneza Jean Louis Fernandez

No início de Quem Matou o Meu Pai escreve ‘Se este texto fosse um texto de teatro…’ e faz algumas sugestões de como poderia ser encenado. Alguma vez pensou a sua escrita como sendo teatral?
Não, de novo, aconteceu por acidente. Quando cheguei à escola secundária nunca tinha lido um livro, nunca tinha ido ao teatro. Havia um estranho fosso em relação aos outros miúdos, porque a maioria era filha da burguesia cultural, filhos e filhas de jornalistas ou professores, tinham lido muitas coisas, conheciam a Sarah Kane… E eu não queria ler porque tinha interiorizado a relação com os livros que a minha família tinha. O meu pai dizia: “Os livros são para maricas, se és rapaz fazes coisas de rapaz, jogas futebol”. Três ou quatro anos mais tarde, comecei a escrever livros mas sem me aperceber de que havia algo de teatral na minha escrita. Quando escrevi História da Violência e Eddy Bellegueule, não tinha qualquer consciência disso. E, de repente, todas estas pessoas começaram a perguntar-me: ‘Podemos fazer uma adaptação?’ Mais uma vez, senti-me acolhido pelo mundo do teatro. Porque nos círculos literários algumas pessoas apoiavam-me, mas muitas criticavam dizendo: ‘É demasiado violento, é demasiado directo, é demasiado gay, é demasiado tudo’. Quando o Stanislas Nordey me desafiou a escrever para o teatro, estava a traduzir para francês uma peça de Anne Carson chamada Antigonick, uma reescrita da Antígona, e lembro-me de pensar: O que seria hoje uma tragédia, que aspecto teria? E apercebi-me de que numa tragédia hoje a violência não vem de um castigo dos deuses, como nas antigas tragédias gregas, mas vem da política, vem de as pessoas se afogarem no mar, deixarem de conseguir pagar as rendas por causa dos cortes na segurança social, não conseguirem ir ao médico porque os estados conservadores estão a esmagar os orçamentos para a Saúde. Então comecei a escrever este livro sobre o meu pai como uma tragédia contemporânea.

Jean Louis Fernandez

Entre tragédias clássicas e contemporâneas, continuamos a falar de vidas que não têm controlo sobre si mesmas. Há sempre alguém que puxa os fios e se comporta como dono do destino dos outros.
Absolutamente. Foi assim que começou Quem Matou o Meu Pai. Fui visitar o meu pai depois de muitos anos sem o ver. Ele é muito novo, na altura tinha 50 anos, mas o corpo dele está completamente destruído. Não consegue respirar sem um aparelho, tem dificuldades em andar, faz sempre um som de sufocação quando respira, mas não sofre de cancro nem de outra “grande doença” com que seja difícil lidar. O estado do seu corpo deve-se apenas ao seu lugar no mundo – um operário de classe baixa. Quando vi o corpo dele e pensei no que aconteceu, desatei a escrever sobre como o trabalho o destruiu e como é que os políticos o destruíram ainda mais. Havia, de facto, pessoas a manejar os fios da vida dele. Vivemos num tempo em que os corpos de pessoas como o meu pai, pessoas destruídas por políticas estatais, não se sentem representados pelos políticos e votam cada vez mais na extrema-direita porque sentem que são os únicos que falam em seu nome. Nós, de esquerda, temos a responsabilidade de falar sobre estas pessoas, caso contrário irão para onde quer que lhes prestem atenção. Escrevi esta tragédia também porque não tinha recordações políticas da política, tinha recordações íntimas da política. Falo disso em Quem Matou o Meu Pai: havia um novo executivo liderado por Sarkozy que, de repente, decidiu que os desempregados tinham de trabalhar ou então perdiam apoios sociais. E então o meu pai, destruído pela vida na fábrica, tornou-se um varredor de ruas, porque era a única coisa que podia fazer sem estudos. E eu pensava: isto é tragédia, é disto que tenho de falar. Os fios que essas pessoas manipulam levantam uma questão de destruição dos corpos, tal e qual como nas tragédias gregas.

Ao Ípsilon, Édouard Louis admite que o seu impulso para a escrita se prendeu também com essa intuição de uma ausência. Quando terminou o ensino secundário e se pôs a caminho de Paris, numa estratégia de sobrevivência que implicou “matar” Eddy Bellegueule e reinventar-se enquanto Édouard Louis, nessa altura em que, de repente, se tornou um leitor voraz, percebeu em si “o feeling” de que corpos como os do seu pai e da sua mãe “estavam completamente ausentes da literatura e do teatro”. “Esta precariedade, esta pobreza, esta dificuldade em viver o dia-a-dia, onde estavam? Onde estava a dor dos trabalhadores fabris? Não via esta dor na literatura e nos palcos e quis escrever sobre isso.” Mas também o quis porque a sua infância foi passada a ouvir, dentro e fora de casa, vozes que se erguiam constantemente a dizer “Ninguém quer saber de nós”. Enquanto isso, o cerco da Frente Nacional de Marine Le Pen foi-se fechando sobre estes excluídos, votantes não num projecto político, mas em quem estava disponível para ouvir-lhes as queixas. A esquerda, acusa Édouard Louis, não dá espaço a estes cidadãos para dizerem “Eu sofro” e serem escutados. “E, por isso, dizem que sofrem por causa dos imigrantes, em vez de dizerem que sofrem devido a uma agenda capitalista neo-liberal”, resume.

Na 38.ª edição do Festival de Almada, o encenador Ivica Buljan apresentou a sua versão de História da Violência, texto em que Édouard Louis reclama a narrativa de uma noite traumática Toni Soprano Meneglejte

Para que fique claro, no entanto, ao falar numa ausência de representação destas vidas nos livros e nos palcos, Édouard Louis não se refere à literal inexistência de “obras sobre a classe trabalhadora”. “Talvez até seja a maioria”, concede, “mas a imagem das pessoas pobres e da classe operária é tão falsa que se torna numa outra forma de colocá-las nas sombras do silêncio. Porque, por vezes, falar também é uma forma de tornar as pessoas invisíveis.” A representação mais habitual das classes menos privilegiadas corresponde, acredita o autor, “a uma mitificação com assinatura da burguesia, grotesca ou caricatural: os pobres são retratados ou como pessoas muito más e sujas, ou então como boas e autênticas, por oposição aos burgueses inautênticos”. “Mas caem sempre numa dessas duas caricaturas. E as pessoas, claro, não são caricaturas.”

Toni Soprano Meneglejte
Toni Soprano Meneglejte
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Toni Soprano Meneglejte
Toni Soprano Meneglejte
Toni Soprano Meneglejte
Toni Soprano Meneglejte
Toni Soprano Meneglejte

É frequente na literatura e no cinema essa narrativa de origem na classe operária como ponto de partida de desvantagem para desenhar uma história de sucesso. Mas sabemos que essa ascensão social é rara e que, de certa forma, parece responsabilizar e até culpabilizar quem não consegue fazer esse movimento.
As pessoas deviam ler sociologia e perceber que isso não acontece, a demografia é a mesma. E há um paradoxo nisso: quando escapamos, percebemos ainda mais como é impossível escapar. Sabemos que a fuga é impossível porque vemos atrás de nós todas as pessoas que lutam, as que tentaram, todas aquelas que nem sequer tiveram o luxo de tentar, até aquelas que nem sequer tiveram o luxo de ter a ideia de tentar, porque estavam rodeadas de uma realidade que não lhes permitia sonhar saírem dali. Porque a força de vontade não é uma causa, a força de vontade é uma consequência. A força de vontade é a consequência de um ambiente que torna possível querer algo e dá as chaves para o conseguir. Todas as pessoas que, miraculosamente, escapam, sabem que é assim. Eu não escapei porque era livre ou porque tentei mais do que os outros, escapei porque não tinha alternativa. Não escapei porque era sensível e por precisar de liberdade e de contacto com as artes – isso é a mitologia mainstream do Billy Elliott. A minha família tinha uma sentença de classe – pobres – e eu tinha sentenças de classe – pobre – e sexual – homossexual. Por causa disso, não tive alternativa senão escapar. Era menos livre e foi essa falta de liberdade que criou este milagre sociológico. Mas as pessoas não nascem livres, tornam-se livres. O teatro é um lugar importante para colocar essas questões e abordar esses assuntos, porque o teatro é uma arte popular. As tragédias gregas e as tragédias de Shakespeare eram super-populares. Só muito recentemente é que os burgueses roubaram o teatro e tornaram-no numa prática de distinção, como o bom champanhe, “Eu conheço Angélica Liddell, tu não a conheces”. Mas não está no ADN do teatro ser burguês, é um processo histórico. Acredito que há algo a fazer no teatro para o tornar um espaço acolhedor, de luta e de discussão.

Creio que foi sobretudo uma questão cultural. O meu pai nunca aprendeu outra palavra que não “paneleiro” para nomear o seu próprio filho. Claro que não quer dizer que não exista homofobia noutros lados, quando se pertence à alta burguesia católica de Paris também não é bom ser gay. Mas no sítio onde cresci aprendia-se a homossexualidade como um insulto. Havia uma obsessão com isto. Gosto de dizer que alguém como o meu pai, que presumo ser heterossexual, foi ainda mais sociologicamente determinado pela homossexualidade do que eu, porque toda a aprendizagem da sua masculinidade foi uma forma de não ser paneleiro. Comer comida a sério como um homem a sério e não como um maricas; não cruzar as pernas, ao contrário do maricas ou do burguês; rejeitar o sistema de ensino porque quando se é um verdadeiro macho não se segue as regras na escola, não se obedece aos professores. Havia uma constante construção da masculinidade como uma rejeição do espectro da homossexualidade. Ser um homem era não ser homossexual, era rejeitar isso a toda a hora, sempre. Não se pode perceber a classe se não se entender estas questões de homossexualidade, de masculinidade. Aquilo que tento fazer no meu trabalho é encontrar uma nova linguagem para falar de classe social. Quando comecei a escrever, há oito anos, tinha a impressão de que falávamos de classe da mesma forma em que falávamos nos anos 1950. E não me parecia real, as circunstâncias não são as mesmas, temos novas formas de pensar.

Sim, claro. Sentia uma invisibilidade e uma necessidade de lutar, mas não vieram do nada. Havia estrelas brilhantes neste céu escuro de invisibilidade [risos]. E essas estrelas eram Ken Loach, Annie Ernaux, os irmãos Dardenne, algumas pessoas que me levaram a compreender que tinha o direito de falar destas vidas. Quando se cresce num meio de classe trabalhadora, na pobreza, somos levados a acreditar que o nosso meio não é interessante. Os burgueses sentem-se sempre autorizados a falar das suas vidas, porque sentem sempre que são importantes. Por isso é que vão à psicanálise contar as suas vidas uma e outra vez, porque pensam que tudo é importante [risos]. O sentimento na classe trabalhadora é muitas vezes o oposto. O sentimento de que não se tem valor. Haver esta sensação de autorização implicou haver pessoas como Ken Loach, Annie Ernaux e os irmãos Dardenne, que também foram importantes para mim porque escapavam à mitologia da classe trabalhadora. Porque quando digo que luto pela classe trabalhadora ou por pessoas como o meu pai e quero dar-lhes um espaço de visibilidade contra a extrema-direita, isso não significa fazer uma apologia deste meio. É um meio que me rejeitou em absoluto, é um meio em que 50% das pessoas são votantes na Le Pen, é um meio em que a minha mãe era tratada de uma forma super-violenta. Mas não se luta na mentira, não temos nada a ganhar na mentira. O que muda o mundo é a verdade. Quando a Simone de Beauvoir escreveu O Segundo Sexo foi um pedaço de verdade, e foi a verdade a mudar a realidade. Não há nada mais revolucionário do que a verdade.

Por Almada passou também Quem Matou o Meu Pai, monólogo dirigido por Ivo van Hove e interpretado por Hans Kesting. Para o encenador belga, Édouard Louis é um dos escritores que está a devolver à literatura as narrativas dos esquecidos pelos centros de poder Jan Versweyveld

A proximidade que Édouard Louis tem vindo a estabelecer com o cineasta inglês Ken Loach resultou já num pequeno tomo publicado em França, Dialogue sur l’Art et la Politique, de título auto-explicativo (e chegado um dia antes de Combats et Métamorphoses d’Une Femme, em torno da relação com a sua mãe), antecipando uma possível colaboração futura. O facto de Loach não abordar em específico a homossexualidade nos seus filmes, defende o escritor, permitiu-lhe de igual forma encontrar um espaço para a sua criação. “A ausência, neste sentido, era uma oportunidade”, diz-nos. “Interessa-me a possibilidade de acrescentar algo e não gosto desta nova agressividade nas artes em que se aponta o dedo a dizer que alguém não pode falar disto ou daquilo. Escrevi a minha própria história porque, provavelmente, tinha acumulado violência e precisava de libertá-la.”

Jan Versweyveld

Com a publicação de Eddy Bellegueule, logo em assumido território autobiográfico, Édouard apercebeu-se de “quão incómoda e perturbadora a autobiografia” pode ser para os leitores. “E isso fez-me pensar que não quero escrever senão autobiografias”, ri-se. “Porque há um statement político subliminar na autobiografia: isto que estás a ler, está a acontecer. Não se pode virar a cabeça e pensar é apenas uma personagem ou apenas um romance. Todos estes códigos de narrador, personagem, situação, romance, tudo isso ajuda as pessoas a não enfrentarem a realidade.”

Édouard acredita que a qualidade desestabilizadora foi desaparecendo da ficção literária nas últimas décadas, à medida que a capacidade de chocar se foi também esbatendo. Ainda assim, nos encontros com leitores em livrarias ou universidades, foi percebendo que sempre que lhe perguntavam: “Mas há um pouco de ficção nos seus livros, certo?”, havia uma procura de conforto. Como se só essa confirmação pudesse tornar a leitura suportável. A autobiografia talvez constitua, por isso, um pequeno reduto para a desestabilização. “No entanto, se olharmos para os dez últimos prémios Goncourt, Nobel ou Booker, vamos perceber que a autobiografia é muito minoritária. Só que como é tão insuportável para as pessoas, tem-se a sensação de que está em todo o lado. Como acontece com os conservadores, para quem basta cinco anarquista para sentirem que estão em todo o lado e que têm de tomar medidas para os parar. A autobiografia, para mim, é anarquia da literatura.”

Thomas Ostermeier abordou pela primeira vez a obra de Édouard, ao estrear na Schaubühne História da Violência. Os dois trabalhariam o texto para esta versão de palco, dando início a uma das mais próxima colaborações que o escritor mantém com criadores teatrais Arno Declair

A partir dessa consciência, Édouard Louis acredita que “o papel dos sociólogos, dos escritores, dos romancistas, dos jornalistas é compreender o que causou esta violência, que estruturas a tornaram possível”. Ao narrar a sua história a partir do olhar da sua irmã ou ao escrever na tentativa de perceber como o seu pai se tornou no homem que conheceu, procura uma forma de compreensão através da literatura. História da Violência, aliás, lembrou-o de como ao chegar ao Paris quis tornar-se um burguês e aceder a um mundo novo para si. “Houve um período da minha vida em que exagerei nesse papel e agora tenho vergonha disso”, confessa. Mas sabe hoje que quando foi atacado “por um tipo pobre e precário magrebino” este o viu como “um inimigo de classe”. “Sei-o na pele que ele me viu assim. Porque quando era miúdo, via o presidente da câmara, o professor ou o farmacêutico da terra, essas elites das pequenas cidades, e sentia-me humilhado por eles. Sentia que não falava bem como eles, que tinha sotaque, que não era suficientemente elegante. E quando aquele tipo me viu tornei-me este corpo que odiava na minha infância.”

Arno Declair
Arno Declair
Arno Declair

Convicto de que “quanto mais uma coisa é horrível, mais temos de compreendê-la”, ideia fortemente impressa nos seus livros, Édouard Louis não deixa de admitir que o seu agressor é a pessoa que mais odeia no mundo. “Morreria se visse a cara dele agora”, afirma. “Ainda assim, quero tentar compreender o que tornou possível esta situação. Por isso, todas as personagens nos meus livros são pessoas pouco simpáticas. As pessoas boas na minha vida, amo-as apenas – não preciso de escrever sobre elas.”

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