Édouard Louis por Ivo van Hove: um vaivém desassombrado

O encenador belga transporta o texto do autor francês para o palco com sagacidade e sentido

 in Público, 13 Julho 2021 | notícia online

Antes de alguém se precipitar na falésia da aparência, diz-se já que Édipo e o seu complexo não são para aqui chamados. Este filho não quer matar o pai. Está cada vez mais carregado de raiva, sim, mas não contra o operário que tem pela frente. Um homem que, depois de longo afastamento, encontra quebrado, derrotado pela doença e pelo álcool. Um pai de quem sempre esteve apartado pela cultura homofóbica do proletariado. A pessoa que o devia proteger mas preferiu o preconceito, e com quem, por estranho que pareça, quase irracionalmente gostava de se reconciliar – provavelmente tanto como verdadeiramente odiar.

Há uma estreita linha, muito fina e por vezes pouco clara, que separa o original Quem Matou o Meu Pai, terceiro livro de Édouard Louis, publicado em 2018, de um panfleto anti-capitalista, ou pelo menos de uma verrina contra os presidentes de França (aliás aplicável a grande parte dos dirigentes políticos europeus e americanos), que nas últimas décadas têm reduzido os direitos dos trabalhadores até ao quase nada. Porém, nem o autor nem o encenador Ivo van Hove cruzam essa linha, embora passem muito do tempo desta peça sobre ela. Ultrapassagem que não se concretiza em grande parte por conta da talentosa maneira como Hans Kesting interpreta este monólogo em jeito de polifonia de sentimentos contraditórios.

No texto de Édouard Louis (n. 1992), autobiográfico, tal como o anterior História da Violência – apresentado, numa encenação de Ivica Buljan, logo no início desta edição do Festival de Almada – e o resto da sua curta obra, um filho vem de Paris até aquele lugarejo no norte de França, que foi o lugar da sua infância e adolescência, de visita ao pai. Passaram quatro anos sem se verem, mas é a indiferença que o recebe. Nada que espante aquele filho emancipado pela distância, pela educação e pelo cosmopolitismo, contudo subitamente chocado pelo que vê. Afinal, o pai, que sempre o acusou de falta de virilidade, entre outros mimos tanto ou mais humilhantes, que sempre desprezou as tentativas de aproximação do rapaz e a sua necessidade de reconhecimento e aprovação, é agora uma fraca figura consumida pela doença depois de um acidente de trabalho que o atirou para o desemprego e para as mãos da Segurança Social aos 50 anos, e que, como de costume, bebe que nem uma esponja. Essa súbita visão da fraqueza, para nem dizer impotência, do antigo opressor não provoca nenhuma epifania. Contudo, entre o carrossel de recordações convocadas pelo regresso à sua origem operária e pobre, que esclarecem o seu caminho enquanto por ali andou e a sua inevitável fuga, vai surgindo, como uma espécie de tomada de consciência alimentada pela raiva, uma reflexão sobre a condição dos trabalhadores e a desvalorização do trabalho que sabota o desejo de vingança, seu propósito inicial.

Com um palco praticamente despido pela sagacidade da cenografia de Jan Versweyveld (também responsável pela iluminação brilhante e apropriadamente poupada nos efeitos), Ivo van Hove cria a sua encenação como um vaivém de sentimentos e recordações e reflexões algo desordenado, mas certo do seu rumo e da sua missão de mapear as emoções que vão surgindo, dando-lhes sentido. Sentido ganho definitivamente através do corpo e da voz de Hans Kesting, actor capaz de expressar a vasta paleta de sentimentos postos em cena com a energia e o desassombro da sua interpretação vívida de arrogância, quando necessário, ou desesperada até às raias da impotência, quando ocasionalmente a razão assoma à consciência da personagem, principalmente quando conclui, encerrando a peça, que “o que precisamos é de uma boa revolução.”

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