Carla Galvão e Sara de Castro procuram a salvação no teatro

O Festival de Almada leva um texto tardio de Tennesse Williams ao Teatro-Estúdio António Assunção. Uma peça sufocante em torno de duas personagens e duas actrizes presas no e ao teatro

Gonçalo Frota in Público, 08 Julho 2021 | notícia online

São duas personagens, tal como diz o título da peça de Tennessee Williams. Mas são duas personagens dentro das quais vivem outras duas. Talvez nem sempre distintas. Felice e Clare são o par de figuras inventadas pelo autor norte-americano, irmão e irmã que Carla Galvão e Sara de Castro transformam em duas mulheres. Porque queriam trabalhar juntas, porque o texto as atraía, porque entenderam não haver perdas substanciais nessa operação de mudança de sexo e porque outras leituras se levantam perante estas duas mulheres abandonadas pela companhia de teatro em que trabalhavam, largadas sem qualquer estrutura ou apoio, entregues à única coisa que sabem fazer: dar corpo e voz a outras.

Ainda mal nos acomodámos na cadeira quando uma delas avisa que “brincar com o medo é como brincar com o fogo”. É uma frase que poderia ficar soterrada debaixo de tantas outras, mas que parece colocar em marcha a peça angustiada que as duas actrizes estreiam no Festival de Almada, com apresentações no Teatro-Estúdio António Assunção até dia 14. Texto tardio de Tennessee Williams, Duas Personagens (1973) obedece a uma escrita já distante de A Noite da Iguana, Doce Pássaro da Juventude ou Um Eléctrico Chamado Desejo. “Foi muito mal recebido pela crítica e pelo público, porque as pessoas queriam os grandes clássicos”, lembra Sara de Castro. “O Tennessee Williams estava a fugir disso, a ir para uma espécie de vanguarda daquele tempo. Estamos sempre a falar entre nós que esta peça tem muitas coisas de [À Espera de] Godot.”

Também em Duas Personagens, como no Godot de Samuel Beckett, há um desejo de partir que nunca é cumprido, um braço-de-ferro constante entre ficar e sair. Mas Tennessee Williams, de forma explícita, coloca na boca de uma das personagens a ideia de que “o teatro é uma prisão”. E, de facto, abandonadas pela companhia e deixadas a sós, estas duas irmãs-actrizes vêem-se prisioneiras de uma vida em que, mesmo quando tentam escapar e refugir-se na ficção, parecem encontrar apenas prolongamentos de si mesmas. Acreditando que o meio teatral encontrará no texto pistas suficientes para se identificar com a situação de precariedade e dependência de uma vida de enorme investimento emocional, Sara de Castro não deixa de notar que se desprende da peça um sentido mais universal. “Esta história de duas mulheres presas dentro do próprio teatro parece-nos uma metáfora muito interessante para a própria sociedade quando perde o sentido de comunidade – seja ela artística, social ou política. Ao esfarelarem-se esses valores, ficamos todos desagarrados.”

Menos pessimistas do que Tennessee Williams, garantem, Carla Galvão e Sara de Castro contrariam o ambiente angustiante da peça com uma fenda rasgada sobre as suas cabeças que, ao longo do espectáculo, vai descendo e alcançando o chão. À medida que as duas personagens se vão enredando num aprisionamento cada vez mais sufocante, dir-se-ia que as encenadoras procuram sempre garantir uma possibilidade de fuga. “Elas estão nesta caverna, mas ao mesmo tempo há sempre a ideia de voltarem ao teatro. Como se elas fossem um gerador de luz, como se esta necessidade de fazer a peça colocasse o teatro num sítio de salvamento”, descreve Carla Galvão. “Sinto que o teatro, a farsa ou a ficção salvam.”

Sara de Castro acrescenta que no contínuo compromisso destas duas personagens em avançar com o espectáculo, apesar do buraco em que se enfiam parecer cada vez mais fundo, existe também “uma dimensão de sobrevivência”. “E há também a ideia de que se não nos espelharmos uns aos outros não nos salvamos.” Se o ar na peça é rarefeito, defendem, “o teatro surge na perspectiva da ignição”. É através do teatro que as duas se aproximam da luz, mesmo quando as linhas distintivas entre estas duas personagens e as duas personagens da peça que interpretam dentro da peça se vão tornando mais turvas e difíceis de discernir. E tal como acontece com as suas personagens, Carla e Sara acreditam que vivem “entre a fatalidade e a necessidade” nesta prática que escolheram abraçar. E da qual, talvez, não saibam – e não queiram sequer – também libertar-se.

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