O Rei Mago e o cometa

De Eduardo De Filippo e Pier Paolo Pasolini. Encenação de Irène Bonnaud. Festival de Almada. Incrível Almadense. Até hoje

Rui Monteiro in Público, 07 Julho 2021

Às vezes é preciso parar e olhar para trás. Irène Bonnaud, encenadora francesa que nunca hesitou em politizar a sua arte, fez isso mesmo procurando, não propriamente regressar, mas antes recordar um tempo em que o teatro era a palavra e a representação mais do que outra coisa qualquer e viajava para além das cidades, visitando o povo nas suas vilas e aldeias graças ao trabalho dos grupos itinerantes.

O tempo, todavia, não volta atrás e, ainda por cima, tem tendência para estar sempre a mudar, principalmente para nunca ser aquilo que nos prometeram. Onde estão, por exemplo, os carros voadores anunciados para o ano 2000? Ou a justiça social? Ou o triunfo da inteligência sobre a burrice, que resolveria todos os problemas conhecidos e por conhecer? Por outro lado, sempre que o tempo muda, deixa um rasto de vítimas, como quem só favorece alguns e nem liga à chusma de inocentes abandonados à sua sorte. Filosofia pop à parte, e como é cada vez mais certo que não há amanhãs que cantem, com uma subtileza cada vez mais rara, Irène Bonnaud, para falar do presente e do futuro sem nunca os referir, utiliza recursos usados há muitas décadas pelas trupes ambulantes que levavam o teatro a quem só tinha ouvido falar dele.

Estamos, portanto, perante um teatro pobre, não de ideias ou intenções, mas de meios. Um teatro que não precisa de cenários nem de iluminação requintada. Só necessita de actores, um ou outro adereço, meia dúzia de figurinos e bons textos. A bem dizer, um teatro sem peneiras que contrarie o “grande espectáculo porno-teológico” que Pier Paolo Pasolini (1922-1975) já via na televisão e na publicidade e nas grandes produções de Hollywood muito antes da Marvel ocupar as salas de cinema; e um teatro que procure o público em vez de o perseguir com a erudição dos seus autores, esse, mesmo ao estilo do que fazia outro italiano importante e em vias de esquecimento, o escritor e dramaturgo Eduardo De Filippo (1900-1984).

Pasolini e De Filippo são uma dupla improvável. Juntar uma intenção de filme com um conjunto de textos de crítica social ligeira é uma ideia sem dúvida arriscada. Mas na sua dramaturgia e encenação, embora, por vezes, de maneira um pouco simplista, Bonnaud consegue criar uma obra agradável em torno da ideia maluca de atravessar Itália no papel de Rei Mago, guiado por um cometa, em busca de um Messias, para encontrar “um estábulo onde não há nada, nem Jesus, nem Maria, nem José, nem burro nem boi – apenas a luz inútil da estrela”.

E se a encenadora deve aos autores, ainda mais deve aos actores, pois François Chattot, Jacques Mazeran e Martine Schambacher, com o seu talento e ancorados na sua vasta experiência são as verdadeiras estrelas que iluminam esta peça surpreendentemente singela.

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