Do teatro como conflito

Spiro Scimone apresenta «La Festa», a sua nova peça

Luciana Leiderfarb in Expresso, 5 jul 2003

Spiro Scimone exprime-se de forma concisa, como se cada frase já estivesse feita e à espera de sair mal se formula a pergunta. Dramaturgo, encenador e fundamentalmente actor, tornou-se conhecido no nosso país a partir da peça Café, que os Artistas Unidos levaram à cena no espaço A Capital. Este texto e outro, intitulado Nunzio, foram escritos no dialecto de Messina, na Sicília, onde o autor nasceu. Agora, Scimone apresenta o seu primeiro texto em italiano, La Festa. Vem representar ao lado de Francesco Sframeli, o seu colega de sempre, com quem tem companhia própria. Com encenação de Gianfelice Imparato, no Teatro Municipal de Almada, quarta e quinta-feira às 18h, no âmbito da 20ª edição do Festival de Almada, que se prolonga até 18 de Julho.

Porquê a passagem para o italiano em «La Festa»?
Porque quando a escrevi senti a necessidade de comunicar por meio desta língua. Mas é um italiano teatral, direccionado para a cena. Tal como aconteceu antes com o dialecto, que era adaptado para a cena, o mesmo se passa com o italiano. Quando se escreve para teatro, importa procurar uma musicalidade, pensar como é que cada frase vai ser dita. Importa não somente a frase, mas o modo de a dizer.

Sente que o teatro precisa de uma língua própria, particular?
Na minha opinião, todas as línguas podem funcionar no teatro. Mas é preciso reinventá-las.

Em que aspectos «La Festa» se destaca das outras duas peças («Café» e «Nunzio»)?
Todo o trabalho tem sempre qualquer coisa do precedente, e também algo de novo, algo no qual se avança. Em La Festa há três personagens em vez de duas. O que há de parecido? O ritmo é muito fechado, a construção das frases compacta. Apesar de serem línguas diferentes, o tipo de escrita é semelhante e pensada para os actores. Quanto às diferenças, mudam certas situações, nomeadamente o facto de as personagens, em La Festa, fazerem parte de uma família, enquanto que em Café e Nunzio elas não possuem qualquer parentesco.

O título «La Festa» é irónico perante o que descreve, ou seja, um conjunto de conflitos.
Sim, a ironia é fundamental. Eles estão a festejar um aniversário de casamento, mas vem ao de cima a violência que se encontra instalada, em surdina, no interior da família.

Por que sentiu necessidade de começar a escrever teatro num dialecto?
Porque naquele momento queria exprimir-me com a língua da minha infância.

Messina e Sicília estão presentes de outras formas na sua escrita?
Parte-se sempre do conhecido, digamos que não é possível escrever sobre o que não se sabe. Mas há também uma procura do universal. A beleza ocorre quando, partindo das situações que conhecemos bem e que nos dizem respeito, chegamos a emoções universais, que pertencem a todos.

Disse uma vez: «O problema do teatro não é não saber falar, mas não saber ouvir. Se não sabes ouvir, não sabes falar». É esta dimensão do quotidiano que recria constantemente?
Nós chegamos ao teatro para falar da vida. Neste momento, escutar é um desafio que se impõe. Há que fazer o esforço de ouvir verdadeiramente as pessoas, de prestar atenção, não somente ao nível das palavras mas também dos silêncios. Quem consegue ouvir o silêncio, ouvirá concerteza mais do que os outros.

Dá muita importância ao silêncio, às repetições de frases, ao ritmo. Pode-se falar, no seu caso, do palco como uma partitura?
Sim. Ao pensar numa frase tem que se imaginar a sua musicalidade. Penso muito nisto, porque estou convencido de que a frase é, para além dos seus significados, um som, e o som é a atmosfera adequada para o teatro. O teatro ganha sentido depois de dito, tal como a música só tem real sentido pela sua interpretação.

Para si, escrever teatro é um complemento da sua actividade de actor?
Digamos que me permite orientar a escrita para uma acção. Um actor, ao escrever, fá-lo essencialmente com vista à realização, à encenação. Não escreve para ser lido. Porque o texto teatral existe somente quando o actor lhe dá corpo. A escrita teatral, aliás, é corpo, e não apenas palavras.

Como surge a dupla com Francesco Sframeli?
Conhecemo-nos há imenso tempo, desde a infância. Todos os meus textos são previamente lidos por Francesco. Mais tarde, na fase da encenação, ele ajuda-me a trabalhá-los, a depurá-los. Mesmo tratando-se de um grupo formado por nós os dois, resulta gratificante verificar que as coisas funcionam num processo de invenção contínua. Isso não quer dizer que estejamos sempre de acordo, mas que, apesar dos desacordos pontuais, chegamos sempre a um ponto comum. E o facto de haver pontos em comum demonstra que o teatro é, essencialmente, um conflito.

Os seus textos estão no limite entre o cómico e o trágico…
A comicidade, tal como o drama, ficam amplificados no momento em que se cria o contraste, em que uma situação dramática inclui um qualquer aspecto cómico. E vice-versa: uma cena cómica torna-se mais forte quando deixa entrever um lado dramático.

O seu trabalho é observar?
Sou um observador porque faço um trabalho criativo. E tudo o que é criado surge da observação.

O que é que considera importante realçar nos seus textos? As relações, os símbolos, os sentimentos?
Tudo é importante se for encontrada uma medida. Acho fundamental a relação entre as personagens, porque com ela o resto vem por acréscimo – os sentimentos, a simbologia.

Quais são as suas referências, os autores que, de alguma forma, prefere ou mesmo retoma?
Beckett, a quem considero o autor mais importante do século XX, por ter revolucionado o teatro. E Pinter, naturalmente; e Shakespeare, por ser o grande clássico, o grande autor do Ocidente.

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