Durante o Festival de Almada, os dias têm a duração de três peças

Na sua 36.ª edição, o Festival de Almada abre um parêntesis na vida dos espectadores mais fiéis. Durante duas semanas, é o teatro que manda nas suas agendas.

Gonçalo Frota (texto) e Nuno Ferreira Santos (foto) in Publico, 17 Julho 2019 noticia online

Durante duas semanas, as suas vidas são ditadas pelo Festival de Almada. Rabiscam e anotam os calendários da programação para gerirem a sua agenda, com um objectivo simples em mente: diante do maior ou menor tempo que têm em mãos, ginasticam as suas horas para tentar ver o maior número de espectáculos possível. Entre os espectadores fiéis do Festival de Almada, sobretudo aqueles que compram a assinatura que lhes dá acesso a qualquer uma das peças apresentadas (mediante a capacidade das salas), é normal assistir a três peças num só dia; e é pouco surpreendente chegar ao fim de um festival que dura duas semanas com mais de duas dezenas de espectáculos para digerir.

Para quem está de fora, pode parecer uma sobredose quase contrária ao amor pelo teatro. Mas é, na verdade, uma voragem motivada por um desejo desmedido de travar conhecimento com companhias, encenadores, peças e produções que, muitas vezes, só podem mesmo ser vistos neste contexto. Afonso Pinto, professor de música, 26 anos, reconhece que este frenesim do lado dos espectadores cria, por vezes, uma situação “um pouco injusta, porque são tantas as peças que pode dar-se o caso de não estarmos preparados para enfrentar todas”. Daí que, neste seu segundo ano de assinatura, tenha optado por, sempre que as reservas o permitam, assistir a um máximo de duas peças diárias, para não sentir que entra na sala cansado e sem disponbilidade total para fruir cada peça. Neste dia em que o encontramos, acompanhado pelo irmão mais novo (19 anos), João Pinto, estudante de Belas Artes, acaba(m) de sair da sala do Teatro Municipal Joaquim Benite rendido(s) a Estação Seca, da criadora francesa Phia Ménard. Em seguida, e porque falhou na edição passada, juntar-se-á ao público que no Palco Grande da Escola D. António da Costa se deleitará com Dr. Nest, criação da companhia de marionetas alemã Familie Flöz.

Dr. Nest é o “espectáculo de honra” deste 36.º Festival de Almada. O que equivale a dizer que, há um ano, foi aquele que reuniu maior entusiasmo do público através de uma votação que cria uma linha de continuidade entre as várias edições e permite aferir das preferências daqueles que preenchem as plateias do festival. Essa vontade de criar uma relação com os espectáculos é evidente em quem frequenta o Festival de Almada: o boca-a-boca faz com que a sessão única em que Dr. Nest renascerá em Almada esteja esgotada (672 lugares), trazendo tanto aqueles (como Afonso) que falharam a peça em 2018 como os outros (como João) que ficaram tão deslumbrados que quiseram ver-se, de novo, diante da Familie Flöz. A medida de antecipação e ansiedade diante de um espectáculo é, aliás, fácil de observar nos momentos programados para o Palco Grande: uma hora antes do início é frequente ver um “caracol” de público começar a desenhar-se no pátio que precede a entrada na sala.

É precisamente aí, a alongar esse “caracol” (a acumulação de público leva a que se vá dispondo em torno do pátio, num efeito de espiral) que encontramos Isabel José e João Limão, ela topógrafa, ele doutorando em estudos de comunicação (44 e 46 anos, respectivamente), que se tornaram devotos do Festival de Almada nas últimas edições, depois de terem vivido em Lisboa durante alguns anos e voltado a assentar vida na Margem Sul. Isabel, na verdade, cresceu com vista para o festival. Os pais vivem ainda na rua da Escola D. António da Costa e do Teatro Joaquim Benite, e viu ser construído o Palco Grande para a nona edição, em 1992, numa altura em que as obras na zona antiga da cidade obrigaram a direcção (então a cargo de Joaquim Benite, hoje entregue a Rodrigo Francisco) a encontrar uma solução alternativa aos palcos que eram usados até então — o novo teatro municipal, baptizado com o nome do ex-director do festival e da Companhia de Teatro de Almada, só foi inaugurado em 2005.

Nessa altura, no entanto, “as companhias e as amizades” que rodeavam Isabel José não a motivavam para descer e adentrar na programação do festival. Em vez disso, a curiosidade ficava-se pela transformação daquele espaço próximo, pela observação de “camarote” (a varanda) dos concertos que integravam a programação paralela e da chegada da gente que ali se desloca(va) para tomar contacto com alguns dos nomes maiores do teatro europeu. Hoje, Isabel e João fazem parte desse público informado que discute com propriedade companhias e encenadores com os quais vão criando relações de admiração. E citam a Familie Flöz, os Peeping Tom, os dramaturgos Marius von Mayenburg e Pascal Rambert, ou os encenadores Christoph Marthaler e Jan Lauwers – Isabel lamenta que O Quarto de Isabella, que não lhe deu descanso durante um ano e a foi conquistando cada vez mais, não tenha voltado como “espectáculo de honra” — como exemplos de criadores que passaram a acompanhar durante as duas semanas do festival mas também a procurar fora deste contexto.

Para muito do público do Festival de Almada esta é também a oportunidade para assistir a grandes produções, como acontece com Mary Said What She Said, protagonizado pela actriz Isabelle Huppert e dirigido pelo encenador Bob Wilson, como aconteceu este ano, da mesma maneira que foi acontecendo com criações de Peter Stein, Thomas Ostermeier, Patrice Chéreau, Josef Nadj, Christophe Marthaler, Claude Régy ou Peter Brook. “A encenação do Peter Brook em 2007 [Sizwe Banzi Morreu]”, recorda João Limão, “é um dos meus espectáculos de referência aqui no festival.”


Este ano 250 pessoas compraram a assinatura para o Festival de Almada antes mesmo de saberem a programção

Para as pessoas de Almada

Isabel Pacheco ultrapassa em passo estugado a reportagem do PÚBLICO e aproveita para acrescentar à conversa anterior que Estação Seca, de Phia Ménard, foi um daqueles espectáculos que lhe encheu as medidas. Antes, Isabel contava-nos que já perdeu a conta ao número de anos em que frequenta o Festival de Almada, mas lembra-se perfeitamente do dia em que “estava muito aborrecida em casa” quando viu “no jornal uma notícia sobre o Festival de Almada” e começou o seu percurso de espectadora. “A partir daí, vim sempre.” E é uma espectadora tão fiel que, não pertencendo ao grupo daqueles que compra a assinatura antes sequer de conhecer a programação (este ano houve 250 pessoas a praticar esse voto de confiança), chegam a telefonar-lhe do teatro para saber se contam consigo mais um ano.

Francamente, às vezes os espectáculos estrangeiros não são tão fascinantes quanto isso. Não sou fascinada e acho que chegamos a ser um bocadinho provincianos.”

Isabel Pacheco, professora aposentada

Professora de Ciências aposentada, Isabel Pacheco fala de espectáculos como Hedda Gabler, de Juni Dahr, como especialmente marcantes nos seus anos de espectadora, mas junta também às suas preferências as produções do Circolando, do Teatro Meridional ou as encenações de Rogério de Carvalho e de António Pires. Isabel faz parte daqueles espectadores de Almada que se relacionam com o teatro desde há muito, tendo frequentado um curso de Adolfo Gutkin — para quem trabalhou como costureira na encenação de Gilgamesh — e o mestrado em Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, assim como dinamizado grupos de teatro escolar. E trava qualquer deslumbramento com as produções internacionais que aportam em Almada. “Francamente, às vezes os espectáculos estrangeiros não são tão fascinantes quanto isso”, diz. “Não sou fascinada e acho que chegamos a ser um bocadinho provincianos.”

Deslocando-se até aos espaços do festival a partir de Lisboa, Isabel Pacheco faz-se acompanhar quase sempre por amigas com quem partilha o interesse pelo teatro. E pertence a uma faixa etária que Rui Afonso, 68 anos, biógrafo e historiador reformado — autor de Aristides de Sousa Mendes, Um Homem Bom — aponta ao PÚBLICO como uma característica do público do festival. “Os espectadores já têm uma certa idade e eles estão agora a tentar interessar um público mais jovem para assegurar a continuação desta tradição”, diz. A viver no Canadá desde os seis anos, Rui organiza a sua vida para poder estar em Almada todos os anos, em Julho, e assistir ao maior número de peças que consiga encaixar nos seus dias. Não é caso único — muitos, como Isabel José, tiram férias neste período para se poderem dedicar por inteiro ao Festival de Almada —, e confessa inclusivamente preferir Almada ao Festival de Avignon, onde esteve em diversas ocasiões. “É mais acessível e muito mais aberto ao grande público”, compara.

Espectador do Festival de Almada desde a terceira edição (1986), quando assistiu a Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, numa encenação de José Peixoto, Rui enaltece a possibilidade de tomar contacto com espectáculos “da Rússia, da Bulgária, da Noruega [encontramo-nos à entrada de Joana d’Arc, da norueguesa Juni Dahr, no Seminário de São Paulo], de toda a parte do mundo”, lamentando que o resto do mundo não conheça ainda o festival. E desabafa que, por vezes, sente que não é até devidamente valorizado para lá da ponte 25 de Abril — um comentário que se refere tanto ao público que se desloca de Lisboa quanto aos problemas de financiamento nos últimos anos. “É essencialmente um festival para as pessoas de Almada”, afirma. “Claro que também vamos ver peças a Belém e ao Teatro Nacional, mas é sobretudo um festival, muito bom, aqui da cidade.”

Não tendo uma assistência exclusivamente almadense, e tendo-se afirmado como o grande acontecimento anual do teatro em Portugal, a verdade é que o Festival de Almada soube cativar e formar um público local com um apetite que ultrapassa, de dentro para fora, as fronteiras da cidade. Desde que o espectáculo de Lluis Pasqual Haciendo Lorca, a partir da poesia ao autor espanhol, foi apresentado no Teatro da Trindade, em 1997, a programação passou a integrar de forma continuada as salas da capital. Este ano, pela primeira vez, e a reboque da homenagem a Carlos Avilez, Almada estende-se até Cascais para as apresentações de O Sonho, de Strindberg, pelo TEC (Teatro Experimental de Cascais). Tanto Rui Afonso quanto Edison Dias, natural do Seixal mas médico em Almada há 20 anos, incluíram Cascais nas suas expedições motivadas pela programação do festival.

Aos 72 anos, médico aposentado mas ainda a exercer — “os médicos, como os padres, nunca se reformam”, garante —, Edison aproximou-se do teatro ainda “menino e moço”, tendo passado por uma “experiência transitória muito superficial” quando estudava em Coimbra e se juntou ao TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra). Pertencendo, nas suas palavras, “a uma época do teatro político e de intervenção”, aquilo que procura no palco é uma reflexão sobre a forma como os afectos e o poder contaminam e ditam as regras relacionais do nosso tempo. E Edison é um bom exemplo da latitude de registos que o festival vai alimentando nos espectadores de Almada, quase indiferentes a tratar-se de clássicos ou criações contemporâneas, entrando para a sala com a mesma disposição para se deixarem encantar diante de um Shakespeare ou de um Ostermeier. À espera da hora para o começo de Estação Seca, a desafiadora coreografia de Phia Ménard, e pronto a repetir Dr. Nest, o médico só lamenta não se ter despachado mais cedo, a tempo de ir ver Que boa ideia, virmos para as montanhas, do Teatro da Cidade.

Enquanto dura o Festival de Almada, para muitos espectadores um dia é tão precioso quando consiga encaixar mais uma peça. E essa é uma conquista que nem sempre se consegue descortinar ao olhar as plateias cheias.

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