38º Festival de Almada: “Viagem a Portugal” do Teatro do Vestido

TENDO COMO PRETEXTO A VIAGEM A PORTUGAL DE JOSÉ SARAMAGO, E PARTINDO DE UMAS PEÇAS DE LEGO E DE UMAS FOTOS ENCONTRADAS NO LIXO, O TEATRO DO VESTIDO CONSTRÓI UM OBJECTO DE UMA EXTREMA SENSIBILIDADE TEATRAL, USANDO UMA LINGUAGEM POÉTICA ONDE RESSOAM SOPHIA, JOSÉ MÁRIO BRANCO E O PRÓPRIO SARAMAGO.

Joaquim Paulo Nogueira in Rua de Baixo, 15 Setembro 2021 | notícia online

Chegamos à sala, a cena aberta. A equipa, de pé, como um friso, na boca de cena de um palco que parece estranho à dinâmica a que nos habituou o Teatro do Vestido cuja linguagem nunca foi a da relação mais convencional entre a plateia e o palco. E essa estranheza, cria, ou pelo menos foi isso que eu senti, uma disponibilidade para um envolvimento diferente com aquele objecto teatral. E enquanto as sonoridades simples me começam, sorrateiramente, a agarrar, a envolver, começo logo a criar sentidos com aquela presença ali, cara a cara com o público, dos actores.

São um grupo coeso, uma pequena comunidade. Os figurinos são tão lindos, as cores e os padrões, parecem ao mesmo tempo do passado e do presente, delícia desta contemporaneidade que tantas vezes vai ao baú para se afuturar. Os actores saem um a um, começa com um impulso, do Estevão Antunes, depois como se desmanchassem vão saindo todos, só fica a Tânia e o músico, olham-se os dois, ela sai, ele vai para o seu lugar na cena.

Nada disto parece por acaso, há uma densidade nestes movimentos. Nos olhares. Os actores entram com objectos.  Tânia Guerreiro com os cavaletes, Simon Frankel  e Estevão Antunes com o tampo, como se fosse o inicio de uma cerimonia. A própria colocação dos dois projectores, a cena dentro da cena, é feita numa tal sincronia que me instala numa inexcedível delicadeza do gesto. Nada é banal, tudo procura uma transcendência qualquer.

E embalo numa linguagem que vou constituindo: os actores calçam as luvas, é como se estivéssemos num laboratório, os materiais são delicados, é preciso não os contaminar, deteriorar. Entretanto o baixo, tocado na boca de cena do lado direito, traz uma melodia que ao mesmo tempo é minimalista e me mantêm na tal estranheza, estranheza, como se me dissesse, tu pensas que sabes o que isto é mas não sabes. Nós também não e sobrevivemos a esse não saber..

No tampo sobre os cavaletes peças de lego vão construindo casas, pessoas, possibilidades. Temos acesso a isso através da filmagem, o mundo em miniatura chega-nos no ecrã que fecha o espaço cénico. Filmam o dentro e fora da casa, fazem jogos, a certa altura filmam o olho de um dos actores a olhar por uma janela, e aquele universo torna-se liliputiano. É como se estivessem simultaneamente a brincar, o lego instala-nos numa dimensão lúdica, mas a fazer, um fazer, um fazer deles, um fazer estranho, que fazer é este? Um fazer testemunhado, o vídeo de Mafalda Pereira é mais um material narrativo com um fazer próprio, quando filma, no modo como filma, aquele olho do actor na janela, não é documento, é divertimento, é brincadeira, é trabalho.

Tenho a sensação de que tudo está muito bem organizado. A música de fora. Os actores a criarem a cena com o lego. Mas depois vejo fugas. Um actor, o Simon Frankel, agarra numa placa de um qualquer material e colabora com a Mafalda na criação de uma imagem vídeo. E estes momentos vão suceder-se., os actores hão-de, aqui e ali, fazer pequenos jogos de cumplicidade com a câmara.  

A cena a esta altura, está construída por um espaço central branco e por, do lado direito, a música, e do lado esquerdo, numa semi obscuridade, alguns objectos, materiais, volumes .Estão decorridos mais ou menos sete minutos de cena, não mais, e jã aconteceu tanta coisa, já estou num outro lugar. Simon tira as luvas e sai do campo. Dirige-se à esquerda, acende um projector,  olha o músico sentado na banqueta que ele acabou de iluminar, este desloca-se, limpa a cena, nesse momento os que estão na mesa viram o seu olhar para o público, e ele desloca-se para o lado esquerdo, que iremos perceber a seguir, é o lado da narração.

Dou-me ao trabalho de descrever tão minuciosamente porque há aqui um conjunto, um coletivo de gestos, que constroem a teatralidade de uma forma inabitual. É claro que poderemos pensar que o Teatro do Vestido é inabitual e que isso é uma marca. No entanto, e reporto-me aos trabalhos que conheço deste grupo, esta relação palco-plateia assim, distanciada, nunca a tinha visto antes. E por isso estes sete minutos iniciais me parecem tão fortes, tão poéticos.

A este momento a cena está clarificada, pode entrar a palavra. Uma palavra tão depurada, faz lembrar, ou ressoar, Sophia, o seu breve poema sobre a revolução, lembram-se: “Esta é a madrugada que eu esperava/ o dia inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/ e Livres habitamos a substância do tempo.”. 

Aqui é    Havia qualquer coisa de infinito nesta possibilidade de se construir tudo de raiz/ O mundo de raiz/ Todas as coisas necessárias de raiz./ Havia qualquer coisa de impressionante na forma como aquelas peças [ encontradas por um deles no caixote do lixo de uma cidade de subúrbio] encaixavam umas nas outras./E permitiam um conjunto perfeito de coisas a inventar.”

Permitiu-lhes construir à escala uma parcela dessa coisa Mundo, uma casa como metáfora de um país, de uma cidade. E numa outra paráfrase com o Vim de longe, de José Mário Branco, de quem mais à frente se irá ouvir pedaços do FMI,  há o indicar que tudo, “a palavra, a utopia, a manifestação, a retórica e a ideologia se tinham esvaziado, nos tinham enchido de nada, havia apenas peças de lego que encaixavam perfeitamente umas nas outras.”

O acaso, a recoleção, a reutilização, a reciclagem, como palavras passe para a reinvenção. Os actores desmontam a cena, tinham começado pelo fim. A ideia de eterno retorno. É notável a forma rápida e delicada como desmontam a cena. Começa uma viagem em dez excertos que estabelece uma relação com a Viagem a Portugal de José Saramago. 

São excertos relativamente curtos. Do livro de Saramago saem um homem e uma mulher (Estevão Antunes e Tânia Guerreiro) , que nos irão acompanhar nesta viagem, que também é a deles, pelas suas memórias do tempo em que “ainda eram inteiros”.

O segundo excerto é um parêntesis sobre os refugiados. Os corpos destes são balões pretos e brancos enfiados à pressa em sacos do lixo. Momento de grande agitação, tentam apanhar os corpos. A metáfora é cruel, crua. 

No terceiro excerto voltamos a este “ pequeno pais na esquina de um continente velho”, metáfora politicamente vibrante. Começa a viagem e já estão cansados concordando ambos que não estavam preparados para aquilo que eles chamavam o estado das coisas.

Antes de avançarmos mais, uma pausa para falar dos actores, as suas vozes. Fiquei absolutamente encantado com os seus registos, os de Estevão Antunes, com a sua voz meio cava, grave, criando uma sonoridade estranha, entre o real e o irreal, o de Simon Frankel, um narrador fabuloso que amplia os sentidos de um texto que é quase sempre de um grande sincretismo poético, também o modo muito incisivo e justo de Tânia Guerreiro. 

No próximo excerto criam uma porta, uma porta para saírem dali. Para se perceber o que é isto do sincretismo poético, e que não é nenhum efeito de estilo da prosa a querer armar-se aos cucos: a forma como falam de África, um relance breve mas certeiro como uma flecha. Ouve-se apenas: “As historias que não contavam enquanto jogavam ás cartas. Até que um agarra no braço da mulher e diz:

– Ai jesus, enterrei lá tantos!

Só esta frase, fomos a Àfrica, à Guerra Colonial e voltámos. Quanto Estevão Antunes diz isto o narrador avança para o centro da cena, entre os dois personagens, eles estão numa aflição porque não sabem como falar sobre o assunto. Calaram-no e meteram-no em malas, ouve-se. E nesse momento Mafalda Pereira, que além de filmar também faz suporte à cena, traz uma mala que coloca na mão de Estevão e este diz:

“- Está aqui a minha guerra toda!”

E não há mais nada, não é preciso dizer mais nada. O tema que foi tão intensamente tratado em “Corpo Suspenso” de Rita Neves e “ Um gajo nunca mais é a mesma coisa”, de Rodrigo Francisco, aqui é metido numa mala e fechado a sete chaves. 

O quinto excerto é uma carta que escrevem ao presidente sobre o país que estão a deixar aos filhos. A necessidade de nos livrarmos das memórias más, o fascismo, a pide. 

No sexto excerto representam em slow motion, as imagens em miniatura trazem mais uma camada de leitura. No sétimo falam das linhas invisíveis, de “Um pais velho encostado a outros países velhos, todos limitados por tratados a norte e o sul, todos orgulhosos das suas estabilidades, e de uma coisa mal explicada, a identidade”. Vemos os nossos livros da primária feitos pack num balcão modernaço dos CTT. 

Há uma mudança cénica, o estirador avança para o centro da cena, a música quase inexistente intensifica a cena.  Estamos mais ou menos claramente já num processo de desmanchar, de desconstruir. E tudo isso vai constituindo viagem, o nosso percurso ali. É muito curioso este processo de ser o espectador a construir, com a sua intuição, face aos sinais de cena, a ideia de que o espectáculo caminha para o seu desaparecimento. 

E o que ficou desta viagem? Diz o Teatro do Vestido “ Partindo das histórias familiares dos membros da equipa do Teatro do Vestido, localizadas em diversas regiões de Portugal – Minho, Ribatejo, Alentejo, Beira Alta, Algarve – lançámo-nos com este projecto no encalço da resposta à nossa pergunta de sempre – como chegámos até aqui?, mas mergulhando desta feita no(s) interior(es) do país, suas paisagens, pessoas, legados históricos e presentes. Que heranças de 48 anos de ditadura aí perduraram ou perduram? Quando se deram os saltos de mobilidade social que nos fizeram reunirmo-nos enquanto equipa na capital do país, todos detentores de cursos superiores, ao contrário das gerações que nos antecederam? Que Portugal é este que habitamos e de onde vimos? Daí a pergunta pertinente de José Saramago, “Afinal, que viajar é este? 

Sobre este muito peculiar do Teatro do Vestido construir o seu percurso com perguntas, uma espécie de refrão,  Rui Pina Coelho, estabeleceu uma cronologia através das perguntas antigas dos espectáculos, começando pelo Mini Museu das Memórias Esquecidas que viu em 2017 com os seus filhos e que tinha a pergunta “ Quanto tempo tem de passar sobre um acontecimento para que se possa falar sobre ele?”. Depois na Trilogia Monstro, entre 2012 e 2013, havia outras perguntas: “ Como chegámos até aqui?”, “De onde viemos?”,  E como viemos aqui parar?.

Quando o espectáculo chegou ao fim, estava perfeitamente deliciado. A meu lado alguém não tinha conseguido entrar na dinâmica proposta pelo Teatro do Vestido e olhou-me com ar estranho. Tanto mesmo? Disse-lhe que sim, compreendendo enfim que um objecto teatral é uma explosão semiótica em busca de interpretação, de ligação, de conexões entre ele e o espectador. 

Todas as relações são possíveis. 

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